Estudo realizado pelo Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência mostrou que mais de 50% dos adolescentes mortos em 2015, em Fortaleza e outros seis municípios do Ceará, tinham o nome da mãe tatuado no corpo, o que evidencia a principal relação afetiva dos jovens cuja vida chega ao fim precocemente. Analisar a destruição desses vínculos de parentesco por causa das mortes violentas em Fortaleza e na Região Metropolitana é o objetivo de uma pesquisa desenvolvida no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará.
Os pesquisadores se debruçam sobre os dramas humanos que se escondem por trás do homicídio de jovens nas periferias, bairros populares e favelas a partir das narrativas das mães dos rapazes assassinados. A ideia é que a compreensão do ponto de vista das mães sobre a história dos filhos revele fatores fundamentais relacionados à dinâmica das mortes. Assim, as narrativas constituem uma rica fonte de informações para o entendimento mais amplo do fenômeno da violência letal no Nordeste.
“Descobrimos que as informações contextuais que essas mulheres são capazes de elaborar ‒ sobre o que aconteceu e sobre por que aconteceu ‒ podem ser extremamente valiosas do ponto de vista da formulação das políticas públicas”, afirma o Prof. Leonardo Sá, coordenador da pesquisa e integrante do Laboratório de Estudos da Violência (LEV/UFC).
Segundo o docente, essas mulheres precisam ser tratadas não apenas como beneficiárias de políticas públicas, mas como parte importante na formulação de projetos que visem melhorar as condições de vida da juventude. Isso se dá porque, além de serem testemunhas próximas quando ocorrem os crimes letais, elas apresentam a capacidade reflexiva de entender e explicar os aspectos que levam ao esgarçamento do tecido social, culminando nas mortes.
Até o momento, foram entrevistadas em profundidade cerca de 30 mulheres de diferentes perfis e de várias áreas socialmente vulneráveis da Grande Fortaleza. Outras serão ouvidas. A pesquisa, financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), é o desdobramento de um projeto mais amplo que vem sendo desenvolvido há cerca de 10 anos em favelas da Capital, voltado para a trajetória de meninos e rapazes envolvidos em contextos de lutas entre facções armadas.
Um dos pontos mais comuns entre os relatos é o momento de “virada” na vida dos jovens em direção às práticas criminosas. Uma trajetória de vida que vinha relativamente bem na infância muda radicalmente com a chegada da adolescência, quando eles são envolvidos pelas lógicas de consumo. Isso causa, segundo a análise dos relatos, uma espécie de “curto-circuito” na relação com a família, uma vez que esta não tem capacidade de satisfazer algumas expectativas básicas desejáveis por qualquer pessoa nessa fase da vida (como compra de determinados itens, possibilidade de ir a shows, festas, bares, lanchonetes etc.).
“Chega um momento em que o adolescente se percebe como fora do jogo. E nesse momento ele se torna extremamente vulnerável para ser capturado pelas dinâmicas do mundo do crime. Afinal, é nesse mundo que ele pode ter alguma forma de reconhecimento, mesmo que seja um reconhecimento negativo do ponto de vista mais geral. Do ponto de vista mais particular do mundo do crime, ele pode ser enfim ‘considerado’”, detalha o Prof. Leonardo.
O FARDO DA CONVIVÊNCIA
Uma das principais descobertas da pesquisa foi a identificação de uma dramática e comum situação que ocorre nas áreas violentas: a convivência ‒ muitas vezes na mesma rua, na vizinhança ou até na própria família ‒ entre a mãe do jovem assassinado e a mãe do autor do crime. Algumas mulheres entrevistadas expressaram sentimento de raiva e desejo de vingança em relação à outra família, que passa a ser vista como adversária.
“Há casos concretos em que isso alimenta o circuito de vingança real, gerando a base do faccionalismo, porque se há duas famílias em guerra, essas famílias não podem fazer parte da mesma facção; então a tendência é tomar partido, buscar uma facção ou outra para não estar na mesma facção do seu inimigo”, explica o Prof. Leonardo. Por isso, segundo ele, o enfrentamento da violência precisa passar por estratégias de superação de conflitos, reduzindo a possibilidade de crimes por revanchismo.
Um caso que consta em um dos artigos científicos publicados no âmbito da pesquisa ilustra bem como a dinâmica dos crimes afeta as relações afetivas. Em um bairro periférico de Fortaleza, uma mulher é, ao mesmo tempo, mãe de um jovem assassinado e sogra do homem que o assassinou. O fato, de acordo com o relato da mulher ‒ que deseja vingança ‒, prejudicou seu relacionamento com a própria filha (esposa do assassino) e gerou uma nova tensão, já que o filho (de 9 anos de idade) do assassinado promete vingar um dia a morte do pai.
FATORES ASSOCIADOS
A pesquisa identificou ainda alguns fatores que ajudam a entender o contexto em que ocorrem as mortes violentas dos jovens. O primeiro deles é a facilidade do acesso às armas de fogo. Alguns conflitos interpessoais relativamente simples, cuja gravidade poderia ser menor, passam a ter alto potencial de letalidade devido à presença das armas.
Outro aspecto importante que emerge é a questão dos padrões de hipermasculinidade, ou seja, a dimensão de sociabilidade é excessivamente baseada na figura masculina, e a resolução de conflitos se dá de modo violento. Aquele que resolve os conflitos com maior nível de força e intolerância passa a ser visto como o “bichão” da comunidade, ganhando respeito e notoriedade. Nesse sentido, a falta de acesso à cultura, ao esporte e ao lazer diminui as possibilidades de convivência em ambientes lúdicos e reforça uma cultura centrada no poder do mais forte.
As barreiras relacionadas a emprego e renda também sobressaem como ponto de vulnerabilidade, uma vez que os jovens do contexto pesquisado provêm, em geral, de famílias com baixíssimo capital educacional. Por isso, eles têm dificuldade para se inserir no mundo do trabalho oficial. O mundo do crime, porém, consegue perceber a capacidade desses jovens e passa a utilizá-los como mão de obra na complexa estrutura do que os pesquisadores chamam de mundo do trabalho ilegal.
“Não é porque não estão oficialmente escolarizados que eles deixam de ter uma inteligência, e uma inteligência por vezes bem sofisticada. E essa inteligência acaba sendo admitida neste outro mundo, o mundo ilegal, que só não é chamado mundo do trabalho porque é criminal”, frisa o Prof. Leonardo.
Por fim, o estudo chama a atenção para um potencial que está sendo desperdiçado pelo poder público, que é a relação família-escola-comunidade como agente de transformação da realidade. A valorização dessa parceria é vista como fundamental no sentido de fortalecer os laços sociais na periferia e de reduzir o terreno propício à proliferação da lógica conflituosa das facções. Para isso, segundo a pesquisa, é preciso que a presença do Estado nesses espaços vá além do aparato policial, priorizando educação, arte, cultura e esporte.
O estudo está sendo desenvolvido no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Sociologia. A ideia é que a conclusão ocorra em 2020 e que, em seguida, seja realizado um seminário com a participação das mulheres entrevistadas e de movimentos sociais, com o objetivo de fomentar uma rede num amplo e permanente debate sobre a temática. Também deverá ser lançado um livro com os principais pontos da pesquisa.
NÚMEROS
O Ceará é o estado brasileiro onde mais jovens de 12 a 18 anos são mortos, de acordo com estudo divulgado em 2017 pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Segundo o levantamento, o Índice de Homicídios na Adolescência (IHA) no Estado referente a 2014 (ano-base da pesquisa) foi de 8,71 por grupo de 1.000 jovens, número que representa mais que o dobro da média nacional (3,65).
Fonte: Prof. Leonardo Sá, coordenador da pesquisa e integrante do Laboratório de Estudos da Violência ‒ e-mail: leonardo_sa@uol.com.br