A pandemia ainda estava começando em Fortaleza, com os primeiros casos registrados, quando pesquisadores de áreas como saúde, geografia e engenharia de transportes se reuniram para responder à pergunta: “Quais bairros serão mais atingidos pelo Covid-19?” A ideia era, a partir de um trabalho multidisciplinar, criar um modelo relativamente simples de previsão do comportamento da doença, que pudesse ajudar técnicos e gestores públicos na resposta à COVID-19.
Os pesquisadores identificaram que os bairros com mais disposição à epidemia tinham perfis muito diferentes: Aldeota, Cais do Porto, Centro, Edson Queiroz, Vicente Pinzón, José de Alencar, Presidente Kennedy, Papicu, Vila Velha, Antônio Bezerra e Cambeba.
O grupo começou a trabalhar no fim de março e, em menos de dois meses, já havia elaborado um relatório técnico completo, apresentado e debatido com as autoridades municipais e publicado um preprint (de forma provisória, ainda sem revisão) na prestigiada revista BMC Public Health. Em outubro, a publicação foi efetivada.
A equipe incluiu, entre outros, os pesquisadores Alberto Novaes Ramos Jr e Anderson Fuentes Ferreira, ambos do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da UFC; Bruno Vieira Bertocini, do Programa de Pós-Graduação em Engenharia de Transportes da UFC; Vitor Macêdo Lacerda e Renan Monteiro Carioca Freire, da Secretaria Municipal de Conservação e Serviços Públicos da Prefeitura de Fortaleza, e José Uereles Braga, do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, que coordenou o projeto.
“A propensão a uma grave epidemia nos bairros de Fortaleza foi muito heterogênea e refletiu não só a mobilidade da população no espaço urbano, mas também a dinâmica da transmissão de uma doença que é influenciada pela situação de vida de uma população em uma cidade”, explica o Prof. Alberto Novaes.
Com essa lista, os pesquisadores traçaram um conjunto de recomendações para atenuar os efeitos do vírus, como o reforço do trabalho de vigilância epidemiológica, oferta e garantia de testes, monitoramento do nível de mobilidade nos bairros e ações para sua redução, entre várias outras.
Muitas delas vieram a ser implantadas. Outras recomendações ainda hoje são um desafio, a exemplo da orientação de imunizar as populações de maior risco, inclusive com adoção do modelo de drive-thru.
COMO FOI FEITO
O modelo começa com o desenvolvimento de três indicadores. O primeiro é a carga de infectividade (casos confirmados da covid-19 notificados à Secretaria Municipal de Saúde até o dia 12 de março). Na época, Fortaleza ainda vivia o início da pandemia, com muitos casos de viajantes que vinham de fora, concentrados na área nobre.
Os pesquisadores avaliaram, então, como o vírus poderia se espalhar pela cidade. Para isso, utilizaram a Pesquisa Origem-Destino, um estudo amostral realizado em 2019 pela Prefeitura de Fortaleza, dentro do Plano de Acessibilidade Sustentável (PASFOR). Essa pesquisa entrevistou 67 mil pessoas, de 23 mil domicílios, para identificar um padrão de deslocamento das pessoas pela cidade.
Combinando os dados de mobilidade das pessoas com os casos registrados até então, os pesquisadores construíram a “carga de infecção” – um índice que sinaliza a capacidade de circulação do vírus pelos bairros.
Mas a circulação do vírus em si não quer dizer necessariamente que a epidemia irá se disseminar de forma mais intensa e grave em determinada região da cidade. Em locais em que há mais aglomerado urbano, por exemplo, o vírus tende a se espalhar de forma mais rápida, por exemplo.
Para avaliar isso, os pesquisadores tomaram como base sete indicadores sociais: proporção de pessoas com mais de dois moradores por dormitório; população analfabeta; população em extrema pobreza; domicílio sem água e banheiro; proporção de desempregados; índice Gini de renda familiar; e pessoas vivendo em aglomerados subnormais.
“Os sete indicadores, avaliados separadamente, apresentaram distribuições espaciais com heterogeneidade relevante”, explica o Prof. Alberto Novaes. Com base nessa análise integrada, os especialistas calcularam um “escore de propensão à pandemia” para cada bairro – ou seja, o risco de ele vir a sofrer um padrão de maior gravidade da covid-19.
MOBILIDADE
Um aspecto importante foi chamar a atenção sobre o papel da mobilidade urbana, quando os dados ainda eram bastante escassos. Com base na pesquisa Origem-Destino, a equipe conseguiu quantificar o impacto das viagens para o trabalho por meio de transporte coletivo, especialmente quando o destino era a região central da cidade.
O estudo teve papel importante também ao, rapidamente, reforçar a necessidade de monitorar e restringir a mobilidade entre bairros, medidas que já vinham sendo implantadas pela Prefeitura de Fortaleza, mas com resistências de diferentes setores.
“A dimensão da mobilidade urbana é fundamental”, diz o Prof. Alberto Novaes, ao relacionar as ações relacionadas ao tema, ao lado do distanciamento social, uso de máscara e higiene constante das mãos, como as medidas de maior eficácia contra o vírus.
“Em Fortaleza, a adoção de momentos com maior intensificação destas medidas certamente teve impacto significativo na redução da gravidade da pandemia no município e no Estado do Ceará até aqui”, diz. “Infelizmente, a ausência de uma política nacional coordenada de enfrentamento, o negacionismo das evidências geradas pela ciência, a falsa dicotomia entre economia e saúde populacional, e a fragilidade de suporte social às populações mais vulneráveis fizeram com que houvesse diferentes graus de adoção dessas medidas pela sociedade”, diz o pesquisador.
O estudo “Propensity for Covid-19 severe epidemic among the populations of the neighborhoods of Fortaleza, Brazil, in 2020” (Propensão à epidemia grave de Covid-19 da população residente nos bairros de Fortaleza em 2020, em tradução livre) foi publicado na revista BMC Public Health em outubro de 2020. A revista possui Qualis 1A e está disponível na íntegra aqui (em inglês).
Este texto faz parte de uma série sobre a produção científica da UFC relacionada à covid-19. Os textos vêm sendo publicados semanalmente na Agência UFC. Os resultados aqui apresentados não representam necessariamente a opinião da UFC sobre o assunto.