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Sociedade e Cultura

A natureza como sujeito de direito

Pesquisadora da UFC estuda nova tendência no direito mundial, que trata a natureza como passível de representação judicial

No fim de 2015, o Brasil viveu seu pior desastre ambiental. O rompimento de uma barragem em Mariana, Minas Gerais, carregou um mar de lama até o rio Doce, responsável pelo abastecimento de vários municípios da região. Dois anos depois, de maneira inédita no País, o próprio rio entrou na justiça para garantir prevenção a novos desastres e proteção à população.

A ação parte de uma perspectiva recente, com grande força na América Latina, que considera a natureza também como um sujeito de direito, ou seja, com capacidade de representação judicial. Essa ideia de direito da natureza tem ganhado espaço nas pesquisas da Profª Germana Moraes, do Curso de Direito da Universidade Federal do Ceará, que já representou o Brasil em assembleia da ONU na qual o tema foi discutido.

A professora explica que se trata de um conceito similar àquele de pessoa jurídica: se é possível atribuir personalidade a um patrimônio, por que não pode ser feito o mesmo com a natureza? A diferença, sinaliza, está na concepção de que a Terra não é uma criação humana, mas algo anterior ao homem e dotada de vida própria.

“A harmonia com a natureza vem como proposta neutralizadora da ação negativa do ser humano sobre a Terra”, defende Germana

Outro exemplo recente foi a mudança na política ambiental do município de Bonito, em Pernambuco, que alterou a legislação local para conferir direitos próprios aos recursos naturais da região. Em Fortaleza e São Paulo também há projetos de lei para que o mesmo seja feito. Na prática, isso significa maior rigidez contra crimes ambientais e fortalecimento da proteção dos recursos.

Essas são mudanças que surgem com a superação da ideia de desenvolvimento sustentável, que passa a ser substituída pela noção de harmonia com a natureza, mais centrada na convivência saudável entre o ser humano e o meio ambiente. “O desenvolvimento nos levou até onde estamos, com ecocídios anunciados. A harmonia com a natureza vem como proposta neutralizadora da ação negativa do ser humano sobre a Terra”, defende a professora.

A perspectiva antropocêntrica começa a ser modificada com a introdução no direito do conceito de consciência Pachamama (Mãe Terra, na língua indígena quíchua), oriundo de povos tradicionais indígenas da América Latina. O caso mais relevante foi o do Equador, cuja Constituição de 2008, logo em seus primeiros artigos, reconhece a natureza como sujeito de direito. Já a Bolívia declarou 22 de abril como o Dia da Mãe Terra.

O grupo de pesquisa Direitos da Natureza, coordenado pela Profª Germana Moraes, realizou visitas a comunidades indígenas originais desses países, com o objetivo de entender a consciência Pachamama. No estudo, o grupo percebeu que se tratava de uma ideia presente em várias culturas espalhadas pelo mundo: a de que a natureza tem uma “consciência” própria, fundada na experiência coletiva, e, portanto, pode ser representada juridicamente e tomar parte em um processo.

Na África, por exemplo, uma concepção similar é a do ubuntu, espécie de filosofia baseada na solidariedade e convivência harmônica, enquanto na América do Norte há a chamada jurisprudência da Terra e, na Europa, a ecologia profunda. “São paradigmas que priorizam a vida, tanto a nossa quanto a vida em sentido mais amplo, considerando-se que a comunidade do planeta envolve humanos e outros seres, todos dependentes uns dos outros”, diz Germana.

CASOS

O caso do rio Doce, no Brasil, não é o primeiro a trazer a natureza como detentora de direitos no âmbito mundial. No Equador, em 2011, o rio Vilcabamba já havia sido tratado como sujeito de direito, após ação movida em decorrência do depósito de grande quantidade de pedras e material de escavação por conta de obra de alargamento de estrada realizada sem os devidos estudos ambientais.

Essa nova doutrina correu o mundo e chegou à Nova Zelândia, onde um conflito entre o governo do país e os povos maoris foi resolvido após a edição de um ato legislativo que reconhecia a interdependência entre aqueles povos e o rio à beira do qual viviam, declarando o rio também como sujeito de direito.

A consciência Pachamama e a representação jurídica da natureza ganham ainda mais força ao se considerar a Terra como um ser vivo

Na Índia, o mesmo foi feito com dois dos principais rios do país: o Ganges e o Yamuna. O caso serviu para fundamentar outra decisão na Colômbia, em relação ao rio Atrato. “Todos esses casos significam reescrever o direito, antes baseado no pilar de que somente o ser humano poderia ser sujeito, por poder expressar sua vontade”, comenta Germana.

Para a professora, a consciência Pachamama e a representação jurídica da natureza ganham ainda mais força ao se considerar a Terra, em si própria, como um ser vivo. “Dois fatores podem dar conteúdo a essa consciência: comunidade, no sentido de que a vida só existe em grupo; e simbiose ou reciprocidade, essenciais para a sustentação da vida”, diz a pesquisadora.

Dentro dessa perspectiva, o grupo de estudos Direitos da Natureza será parte integrante do congresso Sociedade e Natureza, a ser realizado pela UFC de 12 a 14 de junho de 2018, com caráter interdisciplinar, abrangendo não apenas o campo do direito, mas também de áreas como a economia e as ciências biológicas.

Fonte: Profª Germana Moraes, do grupo de pesquisa Direitos da Natureza – e-mail: germanadeoliveiramoraes@gmail.com

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Kevin Alencar 8 de junho de 2018

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