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Violência contra a mulher pode crescer 95% até 2033 e expõe urgência de políticas públicas

Pesquisa mostra que a violência contra a mulher avança de forma ampla e persistente, começa cada vez mais cedo e atinge todas as faixas etárias

Uma sequência de feminicídios e ataques contra mulheres ocorridos recentemente funcionou como gatilho para manifestações que ocuparam ruas de diversas cidades brasileiras durante o mês de dezembro. Em meio ao aquecimento do debate público, uma projeção estatística realizada por pesquisadores da Universidade Federal do Ceará (UFC) se mostra extremamente alarmante: se o país mantiver o ritmo observado nos últimos anos, a violência contra a mulher poderá crescer até 95% até 2033. 

Entre 2013 e 2023, foram notificados 2.635.514 casos de violência contra a mulher no Brasil, com um crescimento médio de 2,26% por ano. A taxa prevista para 2024 é de alta de aproximadamente 3,53% e para 2033 é de 5,59%, representando um aumento de cerca de 95% ao longo da década. Os números foram calculados a partir das notificações ao Sistema de Informações de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, e de dados populacionais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). 

A pesquisa, publicada no Journal of Interpersonal Violence, mostra que a violência contra a mulher avança de forma ampla e persistente, atingindo todas as faixas etárias. A violência física segue como a mais notificada, mas a violência sexual apresenta crescimento mais acelerado, com incidência cada vez maior entre meninas e adolescentes. Ao mesmo tempo, o estudo chama atenção para o aumento de casos envolvendo mulheres idosas, em um contexto de envelhecimento populacional e maior dependência de cuidados.

Uma das autoras do artigo, Mônica Oliveira Batista Oriá, professora do Departamento de Enfermagem e do programa de pós-graduação em Enfermagem da UFC, explica que estudos preditivos são importantes para sinalizar impactos do fenômeno e pensar estratégias de intervenção que possam mudar o cenário. Não se trata, portanto, de um futuro inevitável, mas sim um aviso grave. “Há necessidade imperiosa de mobilização do governo e da sociedade civil para buscar soluções para frear e, idealmente, reduzir a violência à mulher”, diz.

VIOLÊNCIA ESCALA E SE PERPETUA DENTRO DE CASA

Em grande parte dos casos, a violência acontece dentro de casa e é praticada por pessoas do convívio das vítimas, como companheiros, que foram responsáveis por 16,4% das ocorrências, além de outros familiares e cuidadores. Essa proximidade torna o enfrentamento mais complexo, pois dificulta a identificação da violência e a formalização das denúncias, uma vez que destas pessoas espera-se atenção e cuidado.

Deste modo, a casa deixa de ser espaço de acolhimento e proteção, transformando-se em local de risco, especialmente quando há dependência econômica, emocional ou física, perpetuando as agressões. “A vítima costuma confiar nesses indivíduos, depende deles e tem medo de romper esses laços. Essa quebra de confiança prende mulheres e crianças em um ciclo de silêncio e medo”, relata a professora Manuela de Mendonça Figueirêdo Coelho, do PPG Enfermagem da UFC e também autora do estudo.

A pesquisa indica que na maior parte dos casos, diferentes tipos de agressão se acumulam e se sobrepõem, criando um quadro progressivo de abuso. Cerca de 40% das notificações correspondiam a situações de violência repetida. A violência psicológica, muitas vezes invisível nos registros oficiais e até naturalizada ou minimizada tanto por vítimas quanto pelo entorno social, costuma ser a porta de entrada: são agressões verbais, ameaças e humilhações, bem como controle e isolamento da vítima. 

Uma vez que o agressor tem a sensação de impunidade e de controle sobre a mulher, com o tempo esse padrão evolui para outras violências, como a patrimonial, quando a mulher tem o dinheiro controlado ou é impedida de trabalhar “A violência física costuma ocorrer quando o agressor sente que está perdendo o controle, e a sexual é usada como forma extrema de dominação. O estudo mostra que essas violências acontecem juntas porque têm o mesmo objetivo: controlar e limitar a autonomia da mulher”, afirma Manuela.

ABUSOS AVANÇAM EM TODAS AS FAIXAS ETÁRIAS

O estudo aponta para um alargamento do perfil etário das vítimas de violência, indicando que o problema atravessa cada vez mais etapas do ciclo de vida feminino. Embora a violência continue se concentrando majoritariamente em mulheres adultas, de 25 a 59 anos, os dados mostraram crescimento tanto entre meninas e adolescentes quanto entre mulheres idosas, ampliando o desafio para as políticas de enfrentamento voltadas a quem menos consegue pedir ajuda.

Entre as mais jovens, a violência apareceu associada sobretudo a abusos sexuais e psicológicos. Manuela Coelho destaca que crianças e adolescentes correm ainda mais risco porque dependem totalmente dos adultos, que às vezes são os próprios agressores, o que explica casos cada vez mais cedo. Entre 2015 e 2021, o Brasil registrou 202.948 casos de violência sexual contra crianças e adolescentes, sendo 41,2% envolvendo crianças de até 9 anos. Os agressores mais frequentes foram os pais (29,9%) e as mães (23,6%), o que evidencia a gravidade da violência intrafamiliar.

Do outro lado da régua etária, mulheres idosas também apareceram mais vulneráveis, em parte pela dependência de cuidados, que podem se transformar em brechas para abusos de ordem física, psicológica e patrimonial. Estudos indicam que mais de 60% dos casos de violência contra idosos ocorrem no ambiente doméstico, sendo os principais agressores familiares ou cuidadores próximos. “A  maioria vive em um ciclo de dependência financeira, não fala da violência por receio de represália, medo e vergonha”, diz Mônica Oriá.

SUBNOTIFICAÇÃO AGRAVA O CENÁRIO

O estudo alerta que os números oficiais provavelmente representam apenas parte do problema. De acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mais de 60% das vítimas não buscam ajuda. Medo, vergonha, dependência econômica e dificuldade de acesso aos serviços contribuem para que muitos episódios de violência nunca sejam registrados. Além disso, os pesquisadores identificaram lacunas nos próprios sistemas de registro, como formulários incompletos e falta de informação em vários anos. 

O período da pandemia de covid-19, entre 2020 e 2021, segundo o levantamento, agravou essas fragilidades. Com o isolamento social, muitas mulheres ficaram confinadas com seus agressores e tiveram ainda menos condições de buscar ajuda ou registrar ocorrências. Segundo os pesquisadores, o que aparece nos dados pode ser só uma pequena parte da realidade, e a violência contra mulheres no Brasil pode ser muito maior do que os relatórios oficiais conseguem mostrar.

Outro problema identificado pelos pesquisadores foi a ausência de informações sobre o desfecho dos casos em 91,2% das notificações, indicando uma lacuna significativa no acompanhamento das vítimas.

VARIÁVEIS PREDITIVAS APONTAM CAMINHOS

Para entender quais fatores mais ajudam a explicar a violência contra a mulher, os pesquisadores usaram um modelo de computador capaz de analisar padrões e fazer comparações com base em critérios estatísticos. Deste modo, foi possível mapear as oito variáveis de maior impacto na previsão do crescimento da violência contra a mulher no Brasil no período de 2024 a 2033. São elas:

  1. Relação de cuidado do agressor com a vítima, quando este é responsável pela assistência diária à mulher idosa;
  2. Raça/cor asiática da vítima, que reflete desigualdades raciais específicas nas experiências de violência, indicando que mulheres de diferentes grupos raciais enfrentam riscos diferenciados;
  3. Uso de arma de fogo como meio de agressão, uma vez que o acesso a armas pode impulsionar ainda mais a violência com morte como desfecho;
  4. Exploração sexual da vítima, que destaca a gravidade do abuso sexual como um fator que intensifica outros tipos de violência;
  5. Quando a agressora é identificada como “madrasta”, destacando a presença de conflitos familiares complexos que exacerbam a vulnerabilidade das vítimas;
  6. Tipo de violência categorizado como “ameaça”, com potencial de escalar para outras formas de violência;
  7. Pornografia, entendida como um tipo de violência sexual quando a exposição a certos conteúdos pode influenciar o comportamento agressivo;
  8. Quando o agressor é identificado como “conhecido”, indicando agressões por pessoas próximas à vítima. 

As variáveis, no entanto, têm maior ou menor peso conforme a faixa etária da vítima. As variáveis preditivas mais importantes para a violência contra crianças, por exemplo, incluem agressões físicas diretas, como espancamento. Além disso, a presença de pessoas da família entre os agressores, como pai e irmãos, sugere que a violência intrafamiliar desempenha um papel significativo. Entre adolescentes, há maior exposição a métodos extremos de violência. 

Fotografia de homem adulto segurando com força braço de uma criança (Freepik)
A presença de pessoas da família entre os agressores, como pai e irmãos, sugere que a violência intrafamiliar desempenha um papel significativo quando se trata de crianças (Foto: Freepik)

Entre as mulheres jovens, destacam-se as variações associadas à cor da pele e ao contexto familiar, com mulheres negras e mestiças mais vulneráveis em relacionamentos com um companheiro. Para as mulheres adultas, as variáveis mais preditivas estão associadas à violência financeira e agressões com objetos cortantes (77,03%). Já entre mulheres idosas as variáveis de maior impacto incluem fatores de vulnerabilidade social, como o analfabetismo.

As variáveis preditivas ajudam a projetar o comportamento da violência e a identificar áreas onde as políticas públicas podem ser mais eficazes. Conforme o estudo, se os fatores associados à violência contra a mulher não forem abordados adequadamente, a estimativa é que essas variáveis combinadas contribuam para um  crescimento médio anual de cerca de 4,5% nos casos de violência.

NECESSIDADE DE POLÍTICAS DE LONGO PRAZO

Doutoranda do PPG Enfermagem da UFC e uma das autoras do estudo, Ana Carolina Ribeiro Tamboril explica que a violência contra a mulher é um fenômeno complexo e multifacetado, fortemente associado a relações históricas de gênero, poder e controle. Diferentemente de outras formas de violência, ela se manifesta de maneira recorrente e cumulativa, assumindo diferentes formas ao longo do tempo. As dinâmicas da violência e as respostas institucionais disponíveis variam de acordo com fatores sociais, econômicos e regionais, o que exige abordagens específicas e contextualizadas.

A análise regional evidencia profundas desigualdades no país. O Sudeste concentra os maiores números absolutos de casos, enquanto o Norte apresenta o crescimento proporcional mais acelerado, com variação percentual anual de 3,8%. Essas diferenças reforçam a necessidade de políticas públicas ajustadas às realidades locais, uma vez que estratégias homogêneas tendem a falhar diante de contextos tão distintos. Para as pesquisadoras, compreender o território é condição essencial para planejar ações eficazes de prevenção e enfrentamento.

As pesquisadoras também alertam para fatores contemporâneos que contribuem para a escalada da violência no país, como a disseminação de movimentos misóginos nas redes sociais, a exemplo do “red pill”, que desqualificam mulheres, promovem discursos de ódio e exercem influência sobre públicos cada vez mais jovens. O acesso precoce à internet e pornografia aparece como elemento que amplia riscos, especialmente entre crianças e adolescentes ainda em processo de formação emocional e social. Outro destaque é a facilitação para obtenção de armas de fogo. 

As raízes da violência, no entanto, são estruturais. Conforme destaca Mônica Oriá, a violência contra a mulher foi historicamente construída a partir de relações desiguais de poder, estando profundamente enraizada nas estruturas sociais. Desigualdade de gênero, dependência econômica, vulnerabilidade social, pobreza, estresse e dificuldades emocionais e financeiras dificultam a saída das mulheres do ciclo de violência, sobretudo no ambiente doméstico. A percepção de impunidade também pesa, já que processos judiciais lentos e burocráticos frequentemente mantêm agressores em liberdade, ampliando a vulnerabilidade das vítimas.

Fotografia das pesquisadoras Mônica Oriá e Ana Carolina Tamboril (Foto: Ribamar Neto/UFC)
As pesquisadoras (na foto, a professora Mônica Oriá e a doutoranda Ana Carolina Tamboril) alertam para fatores contemporâneos como a disseminação de movimentos misóginos nas redes sociais e o acesso precoce à pornografia (Foto: Ribamar Neto/UFC)

Diante desse cenário, as pesquisadoras defendem políticas públicas consistentes e de longo prazo como principal instrumento para mudar a trajetória da violência. Entre as medidas prioritárias estão o fortalecimento das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher, a integração entre saúde, assistência social e sistema de justiça, a melhoria dos sistemas de informação, investimentos em prevenção e educação e a ampliação de políticas voltadas a grupos mais vulneráveis, como crianças, adolescentes e mulheres idosas. Também são apontadas como essenciais a capacitação de profissionais que atuam com famílias, a ampliação de visitas domiciliares, canais de denúncia acessíveis e o reforço das redes de apoio psicológico, social e jurídico.

O  enfrentamento à violência contra a mulher exige urgência, coordenação e resposta estatal contínua para que as projeções sejam alerta e não destino.

Fontes: Manuela de Mendonça Figueirêdo Coelho e Mônica Oliveira Batista Oriá, professoras, e Ana Carolina Ribeiro Tamboril, doutoranda, do programa de pós-graduação em Enfermagem da UFC – e-mails: manumfc2003@yahoo.com.br / monica.oria@ufc.br / tamboril_@hotmail.com

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Mônica Lucas 17 de dezembro de 2025