Crianças que moram em lares onde a mãe cria filho sem ajuda do companheiro, não conta com uma rede de apoio social e é fumante têm probabilidades maiores de serem expostas a circunstâncias adversas, aponta estudo recente publicado por pesquisadores da Universidade Federal do Ceará. As experiências adversas na infância (EAI) são eventos potencialmente traumáticos que ocorrem nessa etapa da vida e podem influenciar diretamente no desenvolvimento infantil. Abuso físico e emocional são os mais recorrentes no Estado.
Estima-se que comportamentos violentos aos quais crianças são expostas podem estar associados a até 45% dos transtornos da infância e a até 32% daqueles que surgem posteriormente. O estudo aponta que a maior prevalência e intensidade das EAI estão associadas a desfechos negativos, como problemas de saúde mental, doenças crônicas, doenças infecciosas e comportamentos de risco, como tabagismo e alcoolismo.
Para analisar essa situação no Ceará, os pesquisadores visitaram 3.180 domicílios de Fortaleza e de 28 municípios do Interior cearense, tomando por base na escolha a metodologia da Pesquisa de Saúde Materno-Infantil no Ceará (PESMIC). Eles constataram que mais da metade das 3.566 crianças de 0 a 72 meses identificadas haviam sido expostas a três ou mais tipos de experiências adversas, número considerado muito alto pelos pesquisadores, mas compatível com o encontrado em outros países em desenvolvimento.
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Das experiências detectadas, o abuso físico foi a mais prevalente, atingindo 57,2% das crianças, seguido do abuso emocional (55,1%) e da violência por parceiro íntimo da mãe (33,8%). Esses percentuais são mais elevados do que os identificados em outros países, mas se assemelham a realidades referenciadas por pesquisas em outros estados e regiões do Brasil, pondera Iara Martins, mestra em Saúde Pública e uma das autoras do estudo.
“Os nossos resultados podem estar relacionados à cultura de uma disciplina punitiva para educar as crianças”, considera a pesquisadora. “Isso estaria em conformidade com os resultados expostos em outro estudo – Projeto Primeira Infância para Adultos Saudáveis (2019) –, realizado em 16 municípios do Estado com pais ou responsáveis por crianças na primeira infância, o qual revelou que 84% dos entrevistados relataram utilizar dessa disciplina punitiva no processo de educação das crianças.”
A negligência emocional, com 29,3%, os casos de prisão ou morte de um membro da família (28,4%) e a presença de transtorno mental comum materno (20,9%), como depressão e ansiedade, também foram detectados entre as principais experiências adversas entre as crianças da amostra.
“Isso certamente tem levado a um pior desenvolvimento infantil e tem consequências na produtividade escolar e na saúde dos adultos em que essas crianças se transformarão” analisa o Prof. Hermano Rocha, do Departamento de Saúde Comunitária da UFC e também um dos autores do estudo.
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Entre os problemas que podem surgir na vida adulta decorrentes dessas experiências, estão doenças crônicas, câncer, doenças cardiovasculares, doenças sexualmente transmissíveis, além de comportamentos de risco à saúde, hábitos de vida sedentários e inadequados, sofrimento psíquico e maior risco de mortalidade precoce, relata a pesquisa.
FATORES RELACIONADOS
Um dos diferenciais do estudo é que, além de estimar a prevalência das EAIs, ele identifica os fatores de risco e proteção dessas experiências adversas na primeira infância, algo que pouquíssimas pesquisas realizam.
Dos achados, foi verificado que as crianças que não moram com o pai têm quatro vezes mais chances de ser expostas a situações adversas do que aquelas que vivem com a figura paterna. “Separações de casais costumam envolver períodos de estresse intenso e prolongado, com repercussões emocionais e financeiras na família e na própria criança”, considera o estudo.
Já as crianças cujas mães informaram falta de apoio social de amigos e familiares têm quase três vezes mais probabilidade de enfrentar situações violentas. Filhos de mães fumantes, por sua vez, tiveram 71% mais chances de ter pontuações altas para incidência de EAI. “Fumar tem sido frequentemente associado à depressão materna, e as descobertas do estudo podem ser uma extensão de transtornos mentais comuns maternos”, avaliam os pesquisadores.
A insegurança alimentar e desemprego na família também estão entre os principais fatores para essas circunstâncias adversas, elevando em 71% e 41% as probabilidades.
Os resultados estão descritos no estudo “Prevalence and factors associated with adverse early childhood experiences: a population-based study in Ceará, Brazil” (“Prevalência e fatores associados a experiências adversas na primeira infância: um estudo de base populacional no Ceará, Brasil”) foram publicados na Revista Brasileira de Epidemiologia.
IDADE DA MÃE INFLUENCIA
O estudo também revelou que as mães adolescentes foram associadas a uma menor exposição de seus filhos às experiências adversas, e que essa probabilidade vai aumentando à medida que a idade materna é elevada.
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“Isso pode ser devido ao fato de que, considerando o contexto cultural local, os familiares costumam apoiar as mães muito jovens, muitas vezes as avós, tanto nos aspectos econômicos quanto nos cuidados com os filhos”, justifica o estudo. “As mães mais velhas, por outro lado, muitas vezes não contam nem com o apoio do próprio pai da criança.”
Os pesquisadores identificaram ainda a baixa escolaridade do chefe da família como fator fortemente associado ao maior número de EAI. Famílias chefiadas por pessoas com pouca escolaridade apresentaram uma chance 30% maior em relação às que possuíam chefes de nível superior. Para aquelas comandadas por quem não possuía escolaridade alguma, o aumento foi de 60% na comparação com as de nível superior. Vale ressaltar que, neste estudo, 26% das famílias eram chefiadas pelas mães.
NOVOS RESULTADOS
A pesquisa foi desenvolvida tendo por base os dados de 2017 da Pesquisa de Saúde Materno-Infantil no Ceará (PESMIC), que é um estudo transversal de base populacional sobre o estado de saúde e nutrição de crianças de até 72 meses de idade. A PESMIC foi realizada nos anos de 1987, 1990, 1994, 2001, 2007 e 2017. Uma nova edição desse levantamento, a PESMIC 2022, está sendo concluída, apresentando os resultados após a pandemia de covid-19. O levantamento contou com a parceria da Escola de Saúde Pública de Harvard, onde o Prof. Hermano Rocha realizou pós-doutorado. A instituição financia, por exemplo, a medição de hemoglobina das crianças, um novo indicador que estará presente na edição de 2022.
De acordo com o professor, o estudo desenvolvido pode contribuir para o desenvolvimento de programas preventivos eficazes e estratégias interventivas de duas formas. “A primeira, direcionando esforços específicos para as populações que estejam em alto risco e com chance aumentada de apresentar experiências adversas na infância. A segunda, estimando como o cenário ficará se uma das variáveis de risco aumentar. Por exemplo, a insegurança alimentar leva a EAIs. Considerando o grande aumento que tivemos de insegurança alimentar, é esperado que as EAIs tenham aumentado, trazendo aumento de suas consequências negativas a reboque”, prevê.
Fontes: Prof. Hermano Rocha, do Departamento de Saúde Comunitária da UFC – e-mail: hermano@ufc.br; Iara Martins, mestra em Saúde Pública pela UFC – e-mail: iara.martins16@gmail.com
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