A cartografia social é um processo de mapeamento por meio da participação efetiva dos habitantes de determinado espaço. Nos últimos anos, esse tipo de cartografia tornou-se ponto-chave para comunidades vulneráveis reivindicarem seus direitos, como saúde pública e planejamento urbano. Essa é uma das perspectivas trabalhadas pelo projeto de extensão Canto – Escritório-Modelo de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Ceará.
O projeto se caracteriza como uma ação de demandas coletivas, com base em horizontalidade e processo participativo. Surgida em 2009, a ação já realizou diversos trabalhos sociais. Segundo o coordenador do projeto, Prof. Newton Becker, do Departamento de Arquitetura e Urbanismo e Design, o princípio norteador é “levar o arquiteto e urbanista à comunidade que não tenha condições de arcar com as despesas desse serviço”.
O Canto atua na prestação de serviços de assessoria técnica, promovendo projetos arquitetônicos e urbanísticos, bem como a cartografia social. “Essa assistência realmente utiliza o saber técnico dos [futuros] arquitetos e urbanistas, no caso, os alunos, sob a minha tutoria e de outros professores e técnicos da Universidade, para que possamos construir com a comunidade, respeitando também o saber e o conhecimento locais. Temos essa combinação do saber técnico com o saber local tentando chegar a um resultado melhor e mais adequado para cada situação”, explica Becker.
AÇÃO NO BAIRRO
Ao longo de seus 10 anos, o Canto construiu parcerias institucionais para além da Universidade. Atualmente, o projeto tem vínculos com o Instituto da Primeira Infância (IPREDE), com a Defensoria Pública do Estado do Ceará e com o Serviço Social do Comércio (SESC-CE). A partir dessas parcerias surgiu a ação de assessoria técnica e de cartografia social no bairro Parque Presidente Vargas (na Regional V de Fortaleza).
Segundo Lara Aguiar, participante do projeto desde o início de 2019, o caso do bairro chegou até a equipe do Canto através da Defensoria Pública. A comunidade enfrenta, há mais de 20 anos, um processo de desapropriação, com muitos entraves na Justiça. Uma das necessidades dos moradores era o levantamento de dados referentes às casas, para dar início ao processo de usucapião (direito de posse que o indivíduo adquire sobre o imóvel após utilizá-lo por determinado período de tempo). É nesse ponto que o Canto entra em ação.
Após oficinas interdisciplinares com alunos e professores do Curso de Geografia da UFC, os estudantes de Arquitetura e Urbanismo vão a campo para realizar medições nas casas dos habitantes da comunidade e produzir mapas sociais a fim de compreender a realidade do bairro. Segundo o Prof. Newton, a união interdisciplinar foi fundamental para tornar o processo mais empoderador. “Nesse processo de assessoria de usucapião no Parque Presidente Vargas, tivemos o apoio do Curso de Geografia para fazer e elaborar as cartografias sociais da comunidade, para que isso fosse mais um instrumento que reforçasse a posse das famílias dos seus lotes e da sua habitação”, diz o professor.
Durante a ação, o grupo se divide em duas partes: alguns se dirigem às casas inscritas no processo (são 95 residências no total) e fazem o levantamento das medidas para produzir a planta; a outra parte se reúne com outros moradores para colher informações com vistas à cartografia social.
Essa segunda parte do processo envolve uma participação comunicativa e reflexiva dos moradores, que relatam problemas como espaços abandonados, escolas fechadas e postos de saúde sem atendimento. A etapa da cartografia social ocorre no Forró da Dona Lúcia, um espaço de eventos no quintal da casa de Lúcia Fernandes, de 64 anos, presidenta do Conselho de Moradores e uma das lideranças do bairro.
Dona Lúcia tem forte atuação em prol dos moradores do bairro. Saindo de Aracoiaba, interior do Ceará, há 42 anos, ela chegou ao Parque Presidente Vargas quando havia poucas casas no local. Juntamente com outro antigo morador, chamado Pimentel, lutou por melhoria nas condições de vida da comunidade. “A primeira coisa que nós trouxemos foi a energia. Depois, continuamos trabalhando e trouxemos um colégio e um conselho de moradores”, relembra.
Quando eleita pela primeira vez presidenta do conselho, ela tentou ajudar os demais moradores a ter a escritura da casa. Porém, por motivos como lentidão da Justiça e falta de recursos para arcar com as verbas do processo, muitos não conseguiram a regularização do imóvel. Em 2018, a Defensoria retomou o processo de usucapião para 95 casas da região. É nesse contexto que o projeto de extensão Canto tem atuado.
COMPARTILHAMENTO
Histórias como a de dona Lúcia permitem grande troca de conhecimentos entre os estudantes e a comunidade. Segundo a moradora, a parceria é como uma relação de alunos e professores, na qual cada um adquire aprendizado com o outro. Além disso, é um momento de unir as pessoas da comunidade, o que é essencial para construir um ambiente de paz e fortalecer a luta por direitos.
Para João Marcelo, participante do projeto, a dinâmica de entrar nas casas para fazer medições e também trocar ideias é fundamental para humanizar o processo. “A gente faz Arquitetura olhando muito a cidade-mapa.Quando você rebate o mapa na cidade, vai na casa da pessoa e visita, é muito diferente”, afirma. Esse também é o sentimento de Lara Aguiar, que acrescenta: “A gente, como arquiteto e como urbanista, tem que estar preocupada com a realidade das pessoas. É muito diferente estudar o que elas passam e vir aqui entender o que realmente acontece”, explica a estudante.
O PODER DA EXTENSÃO
O momento fora dos muros da UFC é como uma aula de campo que também acrescenta na formação acadêmica. No fim da ação, os alunos retornam à Universidade para finalizar o processo. “A extensão é uma reflexão sobre o poder que a Universidade tem como equipamento social. Não sinto que estou fazendo algo a mais. Acho que estou fazendo meu dever como estudante de uma universidade pública. O Canto, assim como outras extensões, é um fissura que vai abrindo espaço para novos trabalhos, novas realidades e novas ações”, relata a aluna Carolina Guimarães.
Para o coordenador Newton Becker, o projeto é fundamental para a formação dos alunos, pois possibilita atuação e devolução imediatas, enquanto ainda estão no seu percurso acadêmico da graduação. O professor afirma que outro ponto positivo do Canto é a longevidade da ação. “É muito relevante e específico o fato do escritório ser uma ação a longo prazo. Ele não é uma ação planejada para durar dois ou três anos, mas sim uma ação para durar enquanto existir o Curso de Arquitetura e Urbanismo”, conclui o docente.
Clarice Nascimento, sob supervisão de Narjara Pires
Fonte: Prof. Newton Becker, coordenador do projeto – e-mail: canto@arquitetura.ufc