Quase metade dos testes para detecção da covid-19 realizados no Brasil foi aplicada em tempo inadequado, comprometendo, assim, a sua eficácia. É o que conclui estudo da Universidade Federal do Ceará, no qual pesquisadoras analisaram 1,79 milhão de notificações de casos suspeitos da doença feitas em todas as capitais brasileiras e no Distrito Federal. A região Sul apresentou maior índice de inadequação, enquanto a Nordeste, a menor.
A pesquisa intitulada “Intervalo de tempo decorrido entre o início dos sintomas e a realização do exame para COVID-19 nas capitais brasileiras, agosto de 2020”, publicada na revista científica Epidemiologia Serviços de Saúde, analisou dados referentes ao período de 1ª de março e 18 de agosto de 2020. Neste intervalo, o tempo médio que os pacientes brasileiros verificados levaram do início dos sintomas até a execução dos testes foi de 10 dias.
No Brasil, cinco tipos de testagem têm sido aplicados, sendo que somente os exames RT-PCR (841,0 mil testes) e teste rápido de anticorpo (827,7 mil) responderam por 92% do total de exames analisados no período. Cada um dos cinco tipos possui um tempo adequado específico para a sua aplicação.
O RT-PCR, considerado o diagnóstico padrão-ouro, deve ser aplicado de 3 a 7 dias do aparecimento dos sintomas. O teste detecta o ácido nucléico do vírus no escarro, esfregaços de garganta e secreções das amostras do trato respiratório inferior. Já o teste rápido de anticorpo, que verifica a resposta imunológica do organismo por meio da identificação de anticorpo na análise sanguínea, deve ser realizado somente a partir do oitavo dia da aparição das manifestações da doença.
Entretanto, o estudo observou que o intervalo ideal dos exames não foi respeitado em uma a cada duas testagens. No caso do RT-PCR, 47,9% das aplicações foram em prazo incorreto; já no teste rápido de anticorpo, a taxa de inadequação foi de 46,6%. Outros exames tiveram uma margem ainda maior de erro, no que se refere ao período de testagem. O teste rápido de antígeno, que deve ser feito de 2 a 7 dias do surgimento dos sintomas, teve 68% de suas aplicações fora do prazo, o resultado mais negativo observado na pesquisa. Assim como o RT-PCR, esse exame detecta a proteína do vírus no organismo, entretanto, possui uma sensibilidade inferior nos resultados.
A pesquisa mostrou que essa realidade sofreu variação conforme as regiões geográficas brasileiras. Nas capitais sulistas, 66,1% dos testes foram realizados em período inadequado; já no Nordeste, o percentual foi de 41,6%.
FALSO-NEGATIVOS – A falha no tempo adequado de aplicação acarreta uma maior chance de detecção de falso-negativos. As pesquisadoras reforçam que isso impede a equipe de saúde de isolar os suspeitos, fazendo com que não se consiga quebrar a cadeia de transmissão da doença, o que dificulta seu controle.
“No início da pandemia, tudo era muito novo. Dessa forma, a necessidade de agir com rapidez, somada à escassez de conteúdo sobre a doença e seus testes, bem como a pressão popular em realizar um teste, seja ele qual fosse, podem ter sido fatores que levaram a esse alto índice de exames realizados em períodos inadequados”, analisa a Profª Elisângela Teixeira, do Departamento de Enfermagem da UFC e uma das autoras do artigo.
A autora Paula Queiroz, que atuou na linha de frente de combate à covid-19, relatou: “Havia uma pressão popular muito grande. Quando chegava um paciente à unidade à procura de testes e este recebia a informação de que teria que ficar em isolamento e realizar o teste a partir de 8 dias, por exemplo, ele não aceitava bem a informação. Alguns chegavam a alterar a data do início dos sintomas somente para fazer o teste”, acrescenta.
TESTES INADEQUADOS – Além do problema da utilização em períodos inadequados, o estudo identificou outro: o teste rápido de anticorpo foi usado em cerca de metade dos exames realizados, apesar de o Ministério da Saúde considerar que os testes sorológicos (teste rápido, ELISA, ECLIA, CLIA) para covid-19 não devem ser utilizados, de forma isolada, para estabelecer a presença ou ausência do novo coronavírus.
Essa recomendação se dá porque os testes para diagnóstico de indivíduos que apresentam sintomas em contextos epidêmicos devem ter sensibilidade e especificidade altas (maior que 99%). Em geral, a sensibilidade dos testes sorológicos aprovados no Brasil (que é o caso dos testes rápidos) foi superior a 85%, e a especificidade, superior a 94%. A sensibilidade indica a capacidade de um teste de identificar, dentre as pessoas com suspeita da doença, aquelas que, de fato, estão doentes. Já a especificidade é a capacidade de o mesmo teste ser negativo nos indivíduos que não apresentam a doença que está sendo investigada.
A preocupação se dá porque um resultado falso-negativo – particularmente em indivíduos idosos ou cujos mecanismos normais de defesa contra infecção estejam comprometidos – pode resultar em uma alta taxa de morbimortalidade, que é o índice de pessoas mortas em decorrência de uma doença específica dentro de determinado grupo populacional. Além disso, um falso negativo aumenta o risco de transmissão para os profissionais de saúde.
Todavia, pela facilidade de aquisição, por possuir menor custo e pela praticidade de realizá-lo, já que não exige equipamentos ou habilidades especiais para seu uso, esse teste acabou sendo aplicado em larga escala no País. Ele tem se tornado uma “opção para a população geral no rastreamento de casos assintomáticos ou de pessoas com sintomas leves a moderados, sem necessidade de hospitalização, para observar a imunidade/recuperação dos casos confirmados”, destaca o estudo.
Elisângela Teixeira explica que o Teste RT-PCR, apesar de ser padrão-ouro, exige um aparato tecnológico que nem todas as cidades do Brasil possuem para realizá-lo. “No início da pandemia, em alguns estados, sequer se fazia a análise. A coleta era enviada para outro estado e o resultado demorava dias e, em alguns casos, até mesmo semanas para sair. Isso dificultava bastante o planejamento quanto à doença”, avalia.
Ademais, pondera, o TR-PCR é um teste de alto custo. Hoje, alguns estados, a exemplo do Ceará, já conseguem entregar o seu resultado de RT-PCR em um prazo de 24 horas. “Isso, com certeza, auxilia na contenção da doença, pois identifica os casos ainda ativos, isolando-os, o que facilita a quebra da cadeia de transmissão da doença”, analisa a pesquisadora.
CUSTOS – Segundo o painel de testes diagnósticos disponibilizados no sítio eletrônico do Ministério da Saúde, até o dia 18 de fevereiro, tinham sido efetuados 23,5 milhões de testes no Brasil, totalizando um gasto financeiro de R$ 748,1 milhões. O painel aponta para uma ampliação da utilização do RT-PCR em relação ao período analisado no artigo, passando de 47,1% para 62,5% do total de exames aplicados. No período de referência do estudo, 18 de agosto de 2020, haviam sido investidos R$ 384,3 milhões em 15,1 milhões de testes realizados.
PRECISÃO NOS RESULTADOS – O estudo defende a importância da identificação do tempo utilizado na realização dos testes como um dado necessário para a elaboração de planos emergenciais, políticas de saúde pública e de capacitação dos profissionais da saúde para atuarem, de maneira eficiente, nas ações preventivas visando conter a pandemia.
Os dados apresentados na pesquisa mostram a necessidade de capacitação profissional para o emprego de testes de forma correta e no tempo apropriado, especialmente pelo fato de que existem diferentes exames no mercado, argumenta a Profª Elisângela Teixeira. Essas medidas, reforça, visam evitar a notificação de resultados falso-negativos.
Outros fatores, em adição à aplicação em tempo indeterminado, podem interferir nos resultados dos exames para covid-19, conforme o estudo. “A segurança e a qualidade dos testes diagnósticos podem ser ameaçadas pela identificação incorreta das pessoas e/ou do material coletado, coleta de amostra inadequada ou insuficiente, condições imprecisas de transporte e armazenamento da amostra (ex.: tempo de transporte prolongado e exposição a lesões)”, salienta o artigo.
Mais complicações também são citadas: a “presença de substâncias interferentes (ex.: componentes celulares, devido ao congelamento de sangue total e aditivos inadequados) e problemas decorrentes de procedimento na preparação da amostra, como erros de pipetagem durante a preparação manual da amostra ou alíquota, contaminação cruzada ou incompatibilidade da amostra”.
SUBNOTIFICAÇÃO – Uma vez que a testagem fora do prazo indicado de cada exame pode acarretar a notificação errada de resultados negativos, as conclusões obtidas pela pesquisa reforçam a hipótese de que os números da pandemia no Brasil não correspondem à realidade. Outros dados nacionais também levam a essa avaliação, como apontam as autoras do artigo.
“Inquéritos sorológicos realizados em diversos estados indicam o percentual de pessoas que já possuíam anticorpos contra a doença e, muitas, sequer tinham ido à procura do serviço de saúde. Além disso, o Brasil é um país que testa pouco quando comparado a outros países. Isso leva a um índice de subnotificação alto para a doença”, analisam.
AUTORAS – O estudo teve ainda como autoras as pesquisadoras Nila Larisse Silva de Albuquerque, Sabrina de Souza Gurgel Florencio, Maria Gabriela Miranda Fontenele, Glaubervania Alves Lima e Lorena Pinheiro Barbosa, todas do Departamento de Enfermagem da UFC. Assinam ainda a autoria Lanese Medeiros de Figueiredo, da Maternidade-Escola Assis Chateaubriand (MEAC/UFC); Ana Paula Oliveira Queiroz e Silvia Maria Costa Amorim, ambas do Centro de Informações Estratégicas em Vigilância em Saúde, da Secretaria de Saúde do Estado do Maranhão.
O artigo completo pode ser conferido na biblioteca virtual SciELO.
Fonte: Profª Elisângela Teixeira, do Departamento de Enfermagem da UFC – e-mail: felisangela@yahoo.com.br
Este texto faz parte de uma série sobre a produção científica da UFC relacionada à covid-19. Os textos vêm sendo publicados semanalmente na Agência UFC. Os resultados aqui apresentados não representam necessariamente a opinião da UFC sobre o assunto.