No mar tranquilo das praias de Flecheiras e Guajiru, a 140 quilômetros de Fortaleza, a comunidade local recolhe as cordas de nylon que se espraiam na superfície do mar. A “pesca” do grupo é diferente: daquelas redes, presas em boias lançadas a uma distância de até 200 metros da costa, surgem algas vermelhas chamadas de Gracilaria birdiae. Comuns em águas mornas, elas são encontradas do litoral cearense até o capixaba.
Uma vez feita a colheita, essas algas serão separadas, lavadas com água corrente e destilada para então ser armazenadas em freezers a 20 graus negativos pelos pescadores reunidos em torno da Associação dos Produtores de Algas de Flecheiras e Guajiru (APAFG). Depois, elas serão moídas e passarão por um longo processo físico e químico que permitirá extrair produtos como o ágar, uma substância fortemente gelatinosa que pode ser usada tanto na indústria alimentícia como na de biotecnologia.
Foi em parceria com os produtores da APAFG que os pesquisadores da Universidade Federal do Ceará desenvolveram uma metodologia inovadora para otimizar a extração de derivados daquelas macroalgas, obtendo de uma só vez dois produtos de interesse comercial: o R-PE e o ágar. O trabalho acaba de ser publicado na revista internacional Algal Research, classificada como Qualis 1 pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), e está disponível na página da revista .
O trabalho faz parte do projeto de pesquisa desenvolvido pela aluna de doutorado Antônia Livânia Linhares de Aguiar, do Programa de Pós-Graduação em Ciência e Tecnologia de Alimentos, orientado pela Profª Elisabeth Mary Cunha da Silva e coorientado pela Profª Márjory Lima Holanda Araújo, coordenadora do Laboratório de Biotecnologia de Algas e Bioprocessos (BIOAP), do Departamento de Bioquímica e Biologia Molecular. O estudo contou ainda com o suporte da EMBRAPA Agroindústria Tropical.
OS PRODUTOS
O novo processo faz primeiramente a extração de um pigmento chamado de R-ficoeritrina (R-PE), pigmento natural vermelho que apresenta várias aplicações tecnológicas devido a cor e fluorescência. Como é um pigmento atóxico, ele pode substituir facilmente os corantes artificiais. Suas propriedades fluorescentes lhe garantem vários outros usos: dos cosméticos à área da saúde, como marcador celular ou ainda no diagnóstico de certas doenças.
O método permitiu atingir altos índices de recuperação e pureza em poucas etapas. “Esse é o primeiro trabalho que mostra a extração desse pigmento da espécie Gracilaria birdiae, e que mostra métodos rápidos de purificação parcial do pigmento, permitindo sua aplicação em diferentes produtos industriais, incluindo alimentícios”, explica a Profª Elisabeth Mary Cunha da Silva, que também é coordenadora do Laboratório de Carne e Pescado da UFC.
Do resíduo da alga após a extração da R-PE, os pesquisadores obtiveram o ágar, tradicionalmente já retirado desses vegetais. O produto obtido pelo novo método apresentou um rendimento 31,6%, superior ao relatado na literatura especializada.
O ágar, substância sem sabor ou cheiro, é bastante consumido nos países orientais e muito utilizado pela indústria alimentícia como agente espessante, estabilizante e gelificante. Essas características também permitem que ele seja usado em outras áreas, bem específicas: em laboratórios, como agente gelificante de meio de cultura para micro-organismos; na odontologia como base para géis de modelagem de dentaduras; na alimentação de insetos; ou ainda na reprodução de vestígios arqueológicos e até na coleta de impressões digitais.
ECONOMIA AZUL
A proposta da pesquisa é realizar o máximo aproveitamento da macroalga, dentro do conceito de Economia Azul – termo utilizado para falar sobre uso sustentável dos recursos marinhos. O cultivo de macroalgas para obtenção de seus derivados tem aumentado de forma exponencial no mundo nas últimas décadas (ver quadro), uma vez que são organismos que crescem no mar, contribuem para a fixação de CO² e são fonte de nutrientes.
Esse crescimento, no entanto, é muito concentrado na Ásia, enquanto na América do Sul apenas o Chile se destaca.
No Brasil, historicamente a indústria das algas baseou-se na colheita dos bancos naturais, enquanto no restante do mundo, no cultivo de algas. Segundo o trabalho “Macroalgas Marinhas: Conhecimentos Tradicionais e Serviços Ecossistêmicos”, da pesquisadora Ana Beatriz Gomes Ferreira, a produção chegou a seu ápice entre 1973 e 1974, com exportação de cerca de 2 mil toneladas anuais (peso seco).
A exploração excessiva e a ameaça de esgotamento dos bancos naturais na década de 1990, no entanto, fizeram com que em alguns locais a produção diminuísse drasticamente ou até fosse abandonada por produtores locais.
“O cultivo sustentável hoje carece de estudos e investimentos que objetivem conhecer e desenvolver metodologias de propagação de espécies de macroalgas para recuperação dos bancos. Esses investimentos também devem envolver métodos de cultivo adequados ao ambiente e condições da costa brasileira para geração de biomassa em larga escala, além de incentivo, conscientização e orientação técnica para as famílias costeiras”, diz a Profª Márjory.
Sem isso, de exportador de algas nos anos 1970, o Brasil passou a importar seus derivados. Em 2022, o Brasil precisou comprar 115 toneladas de ágar da China, Chile e Espanha, ao custo de US$ 1,7 milhão, de acordo com dados do ComexStat, portal de estatísticas de comércio exterior brasileiro. Já a R-ficoeritrina pura é comercializada a R$ 1,8 mil por miligrama para aplicação em métodos biotecnológicos.
Daí a importância do trabalho das pesquisadoras cearenses. “Esse é o primeiro estudo que propõe um modelo de biorrefinaria da Gracilaria birdiae, assim como a primeira pesquisa que relata o uso dessa espécie de alga vermelha para a extração e purificação da R-ficoeritrina”, diz a autora do estudo, Livânia Linhares.
A Profª Márjory Araújo trabalha com macroalgas desde 2010 no Laboratório de Biotecnologia de Algas e Bioprocessos. O BIOAP é referência no estudo das macroalgas vermelhas para obtenção de compostos biotecnológicos e atua há anos em parceria com a APAFG.
A pesquisadora ressalta a importância do estudo para difundir o cultivo sustentável e o aproveitamento de espécies presentes na região para obtenção de compostos de alto valor agregado e interesse industrial. Ela destaca que a extração dos dois compostos em sequência garante um melhor aproveitamento do recurso natural e a redução de resíduos industriais por meio da combinação de tecnologias e métodos.
Fonte: Profª Elisabeth Mary Cunha da Silva, orientadora da pesquisa – E-mail: elisabeth@ufc.br
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