Os tremores de terra configuram uma ameaça significativa para a preservação do patrimônio histórico. Apesar de possuir pouca atividade sísmica, o Brasil também sofre de eventos do tipo, mas essa preocupação não vem sendo considerada na avaliação dos riscos de danos à herança arquitetônica nacional. Pesquisadores da Universidade Federal do Ceará, entretanto, debruçaram-se sobre esse problema e apresentaram um método de análise de vulnerabilidade estrutural que pode servir de referência para a manutenção de construções luso-brasileiras em todo o País.
O território brasileiro já registrou diversos abalos sísmicos de intensidade moderada, ocorrendo principalmente no Nordeste e Sul do País. No Ceará, as regiões de Sobral e Palhano são as que apresentam maior frequência de tremores de terra, com registros, desde 2018, de terremotos que chegaram a magnitudes de 4.9 e 5.1 na escala Richter, os quais vêm se tornando mais frequentes, conforme dados da Rede Sismográfica Brasileira (RSBR).
Levando tais informações em consideração, os pesquisadores do Laboratório de Reabilitação e Durabilidade das Construções (LAREB) da UFC escolheram as duas principais cidades dessas áreas para elaborar o estudo: Sobral e Aracati. Eles utilizaram as maiores intensidades dos tremores registrados nessas localidades para investigar o pior cenário de danos às fachadas dos prédios dos centros históricos de ambos os municípios.
O comportamento da construção sob evento sísmico depende da qualidade dos materiais, técnicas de construção e estado atual de manutenção. No caso das construções históricas, apontam os pesquisadores, a variabilidade dos sistemas de construção aumenta a complexidade das análises em um cenário sísmico.
Por essa razão, os pesquisadores do laboratório vêm realizando, desde 2014, um levantamento de informações sobre a caracterização das propriedades geométricas e construtivas das edificações históricas do Ceará, em parceria com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Já foram analisados mais de 60 prédios históricos nos municípios de Sobral, Aracati, Icó e Viçosa do Ceará.
“Hoje, a partir desse banco de dados é possível desenvolver ferramentas que possam caracterizar a vulnerabilidade tanto das construções quanto dos centros históricos inteiros”, explica o Prof. Esequiel Mesquita, coordenador do LAREB.
O estudo começou após trabalhos de conclusão de curso que se dedicaram à caracterização de centros históricos de Sobral e Aracati. Com isso, os pesquisadores decidiram desenvolver uma ferramenta mais adequada às construções históricas do Ceará, objetivo alcançado através da dissertação de mestrado da engenheira Amanda Fontenele. O resultado está presente no artigo “Structural vulnerability assessment of facades of Ceará historic cities” (Análise da vulnerabilidade estrutural das fachadas de cidades históricas do Ceará, em tradução livre), assinado por Amanda e o Profº Esequiel e publicado no Journal of Building Engineering.
O artigo apresenta a análise dos riscos de colapso nas construções históricas das referidas cidades causados por abalos sísmicos. Nesses sítios, as ameaças são majoritariamente direcionadas aos prédios de alvenaria, que caracterizam a arquitetura luso-brasileira no Estado. São edifícios de dois pisos e com planta retangular, construídos entre os séculos XVIII e início do século XX.
SITUAÇÃO EM ARACATI E SOBRAL
O centro histórico de Aracati possui uma área de patrimônio protegido que inclui cerca de 275 prédios, enquanto essa zona em Sobral é composta por 1.200 construções. O trabalho analisou as fachadas de 8 construções de alvenaria em Aracati e de 21 em Sobral, escolhidas com base em sua relevância cultural e representatividade geométrica.
“Observou-se que o centro histórico de Aracati apresenta as condições de vulnerabilidade mais significativas. Quase 50% das construções analisadas do patrimônio da cidade registraram alto índice de vulnerabilidade”, revela a engenheira Amanda Fontenele, uma das autoras do artigo. As igrejas Nossa Senhora dos Prazeres e Nosso Senhor do Bonfim, assim como o Museu Jaguaribano, foram apontados como os edifícios com maior vulnerabilidade.
“Já no centro histórico de Sobral, para o pior cenário, uma minoria das fachadas sofreria com fissuras consideráveis e destacamento geral da argamassa”, relata. Nesse centro histórico, os prédios com maior vulnerabilidade são a Estação Ferroviária e as igrejas Nossa Senhora da Conceição e Menino Deus.
ÍNDICE DE VULNERABILIDADE
O estudo apresenta um índice de vulnerabilidade que quantifica a maior ou menor propensão de uma estrutura de determinada tipologia sofrer dano a partir de atividades sísmicas, ou seja, o índice é capaz de prever o dano que cada construção pode sofrer diante de um possível colapso.
Esses dados são de grande importância para se avaliar os aspectos de segurança de um prédio histórico e para definir as estratégias de intervenção e gestão dos centros urbanos. Como edifícios históricos não foram construídos levando em conta mecanismos de resistência sísmica e considerando a falta de uma manutenção regular, a vulnerabilidade de tais construções costuma ser alta.
Diversos fatores influenciam o estado de conservação dos prédios, como o envelhecimento natural e a exposição a agentes ambientais e atmosféricos. A localização do centro histórico de Aracati na costa marítima, sofrendo os efeitos dos ventos, umidade e maresia, é apontada como uma das causas da maior vulnerabilidade dessa área.
Segundo a engenheira Amanda Fontenele, o principal objetivo dessa metodologia de avaliação é inspecionar e avaliar as principais características construtivas do imóvel edificado, podendo classificá-lo em uma escala de danos estruturais. O Prof. Esequiel Mesquita explica que a ferramenta de análise utilizada é a adaptação de uma técnica italiana, que já foi também aplicada em Portugal.
“O método de análise descrito no artigo guia-se a partir de informações de geometria, técnicas construtivas e características de resistência mecânica dessas construções. Ele compara, em um mesmo grupo, fatores que impactam a segurança estrutural dessas edificações”, esclarece o coordenador do LAREB.
PIONEIRISMO
Segundo o professor, já existem algumas ferramentas que geram indicadores de prioridade de intervenção disponíveis na literatura nacional, contudo, nenhuma delas traz ponderações sobre as ações sísmicas, em especial para as construções históricas, e sua influência no risco de colapso dessas construções.
“A preocupação com os centros históricos não é nova, todavia, é uma crítica que eu faço à área: durante muitos anos, ela se restringiu à investigação dos aspectos históricos, arquitetônicos e arqueológicos, e ainda hoje pouco se sabe sobre as propriedades físicas e mecânicas dos materiais empregados nessas construções”, pondera o professor.
A metodologia desenvolvida na UFC foi feita para análise de construções em alvenaria, que representam importante parcela do conjunto histórico edificado no Brasil. Isso permite, afirma o professor, que ela seja usada em outras cidades brasileiras. “Em 2019, quando esse trabalho ainda estava em desenvolvimento, tivemos uma reunião com o IPHAN em Brasília e mostramos os resultados parciais do estudo, e os técnicos do instituto ficaram bastante interessados nessa ferramenta”, destaca o coordenador do laboratório.
O próximo passo da pesquisa é incluir a análise de vulnerabilidade dos centros históricos dos municípios de Icó e Viçosa do Ceará. Com isso, será elaborado um boletim técnico para avaliação das construções luso-brasileiras, a ser publicado através do LAREB da UFC.
IMPACTO NAS NORMAS BRASILEIRAS
Vale lembrar que não é de hoje que os trabalhos desenvolvidos pelo LAREB na área do patrimônio histórico têm tido impacto nacional. Um exemplo disso é a norma brasileira “NBR 16805:2020 – Ensaios não destrutivos – ultrassom – caracterização de painéis por velocidade de propagação de onda ultrassônica”. A elaboração do método que gerou a norma foi coordenada pelo Profº Esequiel Mesquita e teve por base uma metodologia desenvolvida pelo LAREB para caracterização não destrutiva de alvenarias históricas através de trabalhos desenvolvidos nos centros históricos de Sobral e Icó. O professor destaca que essa é uma aplicação inovadora e uma das poucas normas técnicas mundiais focadas na caracterização não destrutiva do patrimônio histórico.
Fontes: Prof. Esequiel Mesquita, coordenador do Laboratório de Reabilitação e Durabilidade das Construções (LAREB/UFC) – e-mail: emesquita@ufc.br; engenheira Amanda Fontenele, integrante do LAREB/UFC – e-mail: amanda_fontenele@alu.ufc.br.