Um dos fatores que tornam difícil o combate ao câncer é a capacidade das células doentes de se multiplicar e viajar pelo corpo. Na metástase, a migração das células resulta no aparecimento de novos tumores, o que torna o entendimento desse mecanismo algo essencial para tratar a doença. Pesquisa da Universidade Federal do Ceará investigou uma área ainda pouco estudada no Brasil – a biofísica celular – e obteve dados que ajudam a entender melhor a metástase.
Realizado pelo Laboratório de Microscopia Avançada do Departamento de Física da UFC, o estudo analisou as características de células de câncer de rim a partir de aspectos biofísicos. Os pesquisadores chegaram à conclusão de que, comparadas a células saudáveis, as cancerosas apresentavam menor rigidez e viscosidade.
Para que o câncer se espalhe, no processo mais comum de metástase, as células doentes viajam pelos vasos sanguíneos até chegar a outra parte do corpo, atravessando as paredes do vaso e instalando-se no novo órgão. A hipótese da pesquisa é a de que as características físicas das células cancerosas – menor rigidez e menor viscosidade – facilitam esse processo de penetração.
De forma análoga, seria como tentar passar dois tipos de materiais por baixo de uma porta: um rígido e outro flácido. Quanto mais flácido o objeto (como as células cancerosas), mais fácil a passagem. Já a viscosidade tem relação com a velocidade do processo: a água, por exemplo, é menos viscosa que o mel e demora menos tempo para se alastrar quando jogada sobre uma superfície.
Com essas informações, os pesquisadores apontam que seria possível, a partir de estudos biofísicos, combater o câncer produzindo medicamentos que tornassem as células mais rígidas e mais viscosas, dificultando o processo de metástase. Uma vez limitada ao tumor primário, a doença poderia ser tratada com mais facilidade.
“Podemos ir atrás de drogas conhecidas que mexam com o citoesqueleto (da célula) para manter o câncer confinado”
O Prof. Jeanlex de Souza, coordenador da pesquisa, explica que a diminuição da rigidez e da viscosidade da célula é um reflexo de mudanças na composição interna dela, sendo proporcional à agressividade do câncer. “Uma célula pode ter um formato estranho porque o citoesqueleto se desestrutura e se rearranja de um modo diferente”, explica. “Podemos ir atrás de drogas conhecidas que mexam com o citoesqueleto para manter o câncer confinado.”
Isso porque, uma vez presente no sangue, a célula cancerosa está sujeita a variações bruscas de força causadas pelo fluxo sanguíneo, como se estivesse em um imenso toboágua. Essas variações potencializam ainda mais a baixa viscosidade das células. “A corrente sanguínea é turbulenta e a viscosidade da célula é influenciada pela força que é aplicada nela. Ela pode fluidificar totalmente quando chacoalhada pela corrente”, diz.
MICROSCÓPIO
Determinar fatores físicos de uma célula humana requer equipamentos específicos, como o microscópio de força atômica (AFM) utilizado na pesquisa. Ele é capaz de criar, na tela de um computador ligado ao microscópio, uma imagem digital mostrando algo parecido com relevos geográficos, como uma “topografia” da célula.
No AFM, uma pequena haste quase invisível toca suavemente a superfície das células, similar ao modo de funcionamento das antigas vitrolas que tocam discos de vinil. Na parte inferior dessas hastes, há outra ponta, impossível de ser vista a olho nu, responsável por “passear” sobre a superfície da célula e captar informações físicas nesse contato.
O Prof. Jeanlex explica que, para detectar o delicado movimento da ponta do AFM em contato com a célula, é preciso ainda o auxílio de um laser. “Se a ponta do AFM mexer, o reflexo do laser vai para um lado ou para outro. É possível ver o desvio do reflexo por meio de um fotodetector. Tudo é transformado em topografia”, diz.
Para medir rigidez, o microscópio fornece dados na forma de curvas de força após aplicar pressão sobre o objeto de análise. É fácil entender esse processo se compararmos a célula a um travesseiro viscoelástico, como aqueles utilizados por astronautas. Uma vez amassado, ele aos poucos vai voltando a seu estado normal, e a velocidade com que isso acontece ajuda a entender sua viscoelasticidade.
PESQUISA
O estudo foi realizado durante um projeto de doutorado sob a supervisão do Prof. Jeanlex. A pesquisa agora será estendida a outros tipos de câncer, além do renal, e aplicada ao desenvolvimento de métodos biomecânicos para o diagnóstico de câncer em parceria com outros departamentos da UFC.
Fonte: Prof. Jeanlex de Souza, coordenador da pesquisa – e-mail: jeanlex@fisica.ufc.br