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Saúde

Ocorrência de bicho-de-pé é relatada em 98% dos municípios do Ceará, revela estudo pioneiro da UFC; Estado não conta com programa de controle

Casos graves estão presentes em todo o Estado, incluindo pessoas com mais de mil focos em seu corpo; perdas de membros e infecções que levam à morte foram relatadas

Um total de 98,3% dos municípios do Ceará já registrou relatos de incidência do bicho-de-pé, nome pelo qual é popularmente conhecida a tungíase. O Estado foi investigado no primeiro estudo sistemático já realizado no mundo sobre a ocorrência da doença, cobrindo uma área geográfica ampla e completa, feito por pesquisadores da Universidade Federal do Ceará (UFC). Apesar da gravidade da situação, não existe nenhum programa de controle em território cearense. 

Dados sobre a ocorrência e a gravidade da tungíase são escassos em todas as áreas em que a doença se desenvolve: América Latina, Caribe e África subsaariana. Para poder planejar medidas de controle baseadas em evidência, os pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública, da Faculdade de Medicina da UFC, desenvolveram e aplicaram um método de avaliação rápida no Ceará, baseado em um questionário on-line aberto para profissionais de saúde e outros agentes envolvidos, que permitiu obter dados básicos sobre o bicho-de-pé no Estado.  

Dos 184 municípios, 181 relataram já ter registrado casos de bicho-de-pé, ficando de fora apenas os municípios de Iracema, Lavras da Mangabeira e Várzea Alegre. Entretanto, como os dados coletados desses três municípios foram considerados escassos, os pesquisadores assumem que a tungíase ocorre em todos os municípios do Estado.  

Para o coordenador da pesquisa, Jorg Heukelbach, professor do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da UFC, além das poucas respostas dos agentes de saúde nesses municípios, um outro motivo pode justificar a ausência de ocorrências nestas localidades. É que a tungíase é uma doença estigmatizante e associada à pobreza, isto é, gera preconceito e provoca vergonha nos pacientes. “Muitas pessoas, especialmente aquelas com casos mais graves, se escondem do convívio social, e os agentes de saúde acabam não tendo conhecimento sobre elas”, revela o pesquisador. 

Foto do professor Jorg Heukelbach
Coordenador da pesquisa, o Prof. Jorg Heukelbach estuda tungíase há 25 anos no Ceará e criou uma rede internacional, através da qual conseguir incluir o bicho-de-pé na lista de doenças tropicais negligenciadas da OMS (Foto: Divulgação)

Os resultados do estudo também expõem que 155 municípios (84,2% do total) notificaram ter observado casos graves da doença. Os dados foram obtidos em 2021, e, naquele ano, a ocorrência estava presente em 120 municípios (65,2%), sendo 47 (25,5%) deles com casos graves.  

A pesquisa apontou ainda que 72% dos municípios identificaram a presença da doença em animais, especialmente em cães, suínos, gatos, cavalos e caprinos. Além de ser um fator de risco para a contaminação em humanos, o bicho-de-pé em animais também representa uma ameaça econômica a pecuaristas. 

Apesar da significativa ocorrência da doença no Ceará, não existe nenhum programa específico de controle no Estado. “O único do Brasil com um programa do tipo, até onde sei, é o Rio Grande do Sul”, afirma o Prof. Heukelbach. Segundo ele, é necessário, para controlar a doença, um programa de saúde integrado e multidisciplinar, com ações que envolvam as condições de moradia das pessoas, de saúde, de cuidado com os animais domésticos e de conscientização para que se evitem comportamentos de risco.  

O Prof. Heukelbach considera que o método elaborado é um exemplo da possibilidade de se pesquisar a distribuição da doença em territórios amplos, que pode ser replicado em todos os estados do Brasil e em outros países, além de ser aplicado para outras doenças. “A metodologia serve para que possamos ter uma ideia do que está acontecendo na área. Não sabemos ainda quantas pessoas estão contaminadas, mas sabemos onde existem os casos mais graves. A partir daí, é preciso aprofundar estudos nessas regiões mais críticas”, aponta o professor, que estuda a tungíase há 25 anos.  

HABITAÇÕES PRÓXIMAS À PRAIA SÃO MAIS AFETADAS 

Os municípios costeiros são aqueles com maior ocorrência de bicho-de-pé, incluindo Fortaleza. Na capital, bairros como Praia do Futuro e Vicente Pinzón agregam mais casos. Isso porque, informa o Prof. Heukelbach, a prevalência da tungíase está associada especialmente a más condições de vida e de moradia. Portanto, ela está mais presente em bairros com comunidades pobres da capital.  

Colagem com 4 fotos de habitações com piso arenoso
Características de comunidade endêmicas para o bicho-de-pé (Fonte: Mehlhorn, H., Heukelbach, J. (eds) Infectious Tropical Diseases and One Health in Latin America. Springer, Cham.).

Os parasitas, pulgas chamadas cientificamente de Tunga penetrans, encontram-se tanto em áreas rurais quanto em urbanas, como favelas de grandes cidades e comunidades pesqueiras. Mas o estudo realizado no Ceará comprovou que a doença está distribuída por todo o Estado, inclusive no semiárido e nos municípios localizados em serras, e com casos graves em todas as regiões. Como o parasita necessita de condições favoráveis de temperatura e umidade, há mais incidência próximo ao litoral. Em regiões secas, as pulgas surgem após os períodos chuvosos.  

A condição de habitação que favorece a infestação com o bicho-de-pé é especialmente o piso arenoso no interior das casas. Além disso, a presença de animais que podem atuar como reservatórios dos parasitas, como gatos e cachorros, é outro agravante, juntamente ao pouco acesso à água e a condições higiênicas e aos baixos níveis socioeconômico e de escolaridade. 

Cerca de 80% dos infectados são crianças, evidencia outro estudo com a participação do professor. Isso ocorre porque elas têm o maior costume de andar descalças, em casa e na rua. O costume de socializar em áreas com chão de areia, como embaixo de árvores, também favorece a infestação. 

CASOS GRAVES DE AMPUTAÇÃO E ATÉ DE MORTE 

A infestação grave com o bicho-de-pé pode levar a sérias complicações, aponta a pesquisa. Isso acontece porque a área afetada do corpo fica sujeita a infecções bacterianas, que podem levar ao tétano, à ulceração e à deformação dos dedos (das mãos e dos pés). Os entrevistados no estudo relataram casos de amputação de dedos das mãos e dos pés, perdas das unhas, lesões nas nádegas, pessoas com dificuldades de locomoção, internação e, inclusive, casos de morte. “O bicho-de-pé, em si, não causa a morte. Mas ele pode causar infecções secundárias por bactérias que podem causar doenças mais graves. Mas os casos de morte são raros”, pondera o Prof. Heukelbach. 

Infográfico do ciclo biológico da pulga
Ciclo biológico da contaminação pela pulga (Fonte: Mehlhorn, H., Heukelbach, J. (eds) Infectious Tropical Diseases and One Health in Latin America. Springer, Cham)

Ele relata que há casos graves em que pessoas possuem mais de mil focos de bicho-de-pé no corpo. Isso é possível porque, durante a vida no hospedeiro, a pulga pode eliminar milhares de ovos no ambiente, que se desenvolvem em larvas que passam a penetrar outras partes do corpo da pessoa que mora no local. Em forma de pupa, os parasitas podem sobreviver por tempo prolongado no ambiente e, após um estímulo, como a vibração causada por uma pessoa caminhando na areia, eles eclodem em segundos e atacam o hospedeiro. Um outro estudo realizado pelo pesquisador identificou um total de 2.765 ovos eliminados por uma única pulga durante um período de 46 dias. 

O Prof. Heukelbach destaca, contudo, que o estudo feito no Ceará revela uma redução na prevalência dos casos de bicho-de-pé no Estado ao longo dos últimos anos. “Isso tem a ver com a melhoria das condições de vida da população. Há uma parcela maior de famílias com piso de concreto em casa, há mais casas de cimento na área urbana, em lugares onde eram de papelão. Também teve uma melhoria no sistema de saúde, com o Programa de Saúde da Família. Tudo isso influencia a redução das infecções com a tungíase”, explica. 

OMS INCLUI TUNGÍASE ENTRE DOENÇAS NEGLIGENCIADAS 

O Prof. Heukelbach começou a estudar a tungíase há 25 anos em uma favela na Praia do Futuro. Na época, relembra, a doença não era levada a sério. “As pessoas achavam que era só um bichinho”, conta. Daí, o professor criou uma rede internacional, realizando estudos também na Nigéria, no Quênia e na Tanzânia. “Após anos de luta e criando evidências, conseguimos que a OPAS [Organização Pan-Americana da Saúde, da Organização Mundial de Saúde] incluísse a tungíase na lista de doenças tropicais negligenciadas”, informa.  

O bicho-de-pé entrou na lista da OMS em 2020, e, agora, o professor, com um grupo de experts, está elaborando normas de tratamento da tungíase, documento que deve ser publicado em breve. O estudo realizado no Ceará foi parte de uma pesquisa de doutorado de Nathiel de Sousa Silva no Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da UFC, orientado pelo Prof. Heukelbach. Segundo o doutorando, é muito importante que a doença tenha sido incluída na lista da OMS.

“Quando nós falamos da tungíase, é impossível não citar que ela é uma doença ignorada pela comunidade médica, pela comunidade científica e pela população também, que vê a doença como algo simples, não trata adequadamente, muitas vezes nem trata e nem sabe os riscos que está correndo”, considera Nathiel. Segundo ele, o estudo, ao trazer dados sistematizados, contribui com informações indispensáveis para a criação de um programa de controle eficiente.

Os resultados estão presentes no artigo “Occurrence of tungiasis in Ceará State, Northeast Brazil: results of a rapid assessment method” (Ocorrência de tungíase no Estado do Ceará, Nordeste do Brasil: resultados de um método de avaliação rápida), publicado no ano passado na Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical.  

“O objetivo do estudo é descrever a magnitude do problema. O primeiro passo para acabar com o problema é mapeá-lo. Após isso, é preciso detectar as áreas prioritárias e desenvolver medidas de intervenção. Precisamos, portanto, chamar a atenção dos gestores públicos de saúde para a questão”, reforça o pesquisador. 

Fonte: Prof. Jorg Heukelbach, do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da UFC – e-mail: heukelbach@ufc.br.

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Sérgio de Sousa 7 de agosto de 2024

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