O mundo tem assistido ao rápido avanço de uma epidemia silenciosa de depressão. Em 2019, a Organização Mundial de Saúde (OMS) já estimava que mais de 280 milhões de pessoas viviam com um transtorno do tipo no mundo. Com a pandemia de covid-19, estima-se que o número tenha saltado 25%. O crescimento acelerado tem impulsionado a busca por novos antidepressivos, mais eficazes e com efeitos clínicos mais rápidos do que os atualmente existentes.
Além disso, cerca de 30% dos pacientes com depressão não respondem a nenhum fármaco existente no mercado, a chamada depressão resistente ou refratária, o que mostra a necessidade de se procurar novas estratégias com efeito antidepressivo.
A busca por novas substâncias antidepressivas encontrou terreno fértil com o boom da retomada dos estudos de psicodélicos nos últimos anos. Uma das mais promissoras para casos severos de depressão está na DMT, ou N,N dimetiltriptamina, molécula que possui um efeito psicoativo poderoso, e mais seguro quando comparado ao de outras substâncias.
Na natureza, DMT está presente em vários vegetais e alguns animais. Seus efeitos psicoativos ganharam notoriedade a partir de infusões de plantas como a jurema e a chacrona, esta última utilizada em rituais sagrados milenares na região amazônica e por grupos religiosos urbanos na elaboração da ayahuasca. No Brasil, o uso do chá é autorizado apenas para finalidades religiosas.
TESTES NA UFC
Na UFC, pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Farmacologia avaliaram o efeito da DMT em modelos animais e obtiveram bons resultados na luta contra a depressão persistente. O trabalho foi feito pelo pesquisador Cid Coelho Pinto, com orientação do Prof. David de Lucena e coorientação da Profª Danielle Macêdo.
Os cientistas induziram efeitos semelhantes à depressão em camundongos, utilizando administrações repetidas de corticosterona, o “hormônio do estresse” dos roedores, equivalente ao cortisol nos seres humanos. Esse é um protocolo já bem conhecido no meio médico.
A partir daí, dividiram os camundongos em cinco grupos. Um deles foi mantido “saudável”, sem receber o hormônio. O segundo recebeu apenas água. Outro recebeu quetamina, um anestésico que tem se mostrado promissor no tratamento da depressão persistente.
Já os dois últimos grupos receberam uma única dose do chá da Ayahuasca, recebido da União do Vegetal, religião que faz uso ritualístico da infusão. A diferença entre os dois grupos foi a dosagem: o primeiro recebeu a dosagem padrão da DMT, sugerida por outras pesquisas anteriores; e o segundo grupo recebeu apenas metade.
Os animais foram submetidos a quatro tipos de testes comportamentais, que avaliam sinais como luta pela vida, tempo de imobilidade, locomoção e memória, esta última analisada em um teste chamado Labirinto em Y, e comparados aos camundongos do grupo controle (que não receberam nada). Os resultados mostraram que os que receberam DMT e quetamina conseguiram reverter os sintomas em três dos quatro testes. Mas, no labirinto, aqueles que receberam a dose completa da DMT conseguiram obter os melhores desempenhos.
Além de confirmar o efeito antidepressivo da DMT, apontado em estudos anteriores, a pesquisa feita na UFC trouxe uma novidade: a utilização de dose única. “O DMT tem se mostrado muito promissor. Os resultados confirmaram em dose única estudos anteriores que haviam sido feitos com várias doses”, destaca o pesquisador Cid Pinto. Esse é um ponto importante quando se lembra que os efeitos dos antidepressivos atuais só começam a ser sentidos pela maioria dos pacientes após duas a quatro semanas de um tratamento normalmente de longo prazo.
Para Cid, no entanto, antes de se pensar em um novo fármaco, mais importante é compreender o funcionamento da molécula e de seus efeitos. “Ao mesmo tempo, é preciso que tudo seja feito com zelo muito grande porque o uso dessa substância hoje só é autorizado como elemento da religião”, destaca.
O funcionamento e os efeitos da substância são justamente o que está sendo investigado em outras pesquisas da Universidade. Em parceria com o Prof. Cláudio Costa, a Profª Danielle Macêdo desenvolve uma pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Medicina Translacional, ainda em andamento, para avaliar os efeitos antidepressivos da DMT obtida a partir da jurema-preta.
Para o ano que vem, a pesquisadora pretende realizar nova pesquisa, desta vez com professores da área de psicologia, utilizando a ayahuasca com pacientes com borderline, um transtorno de personalidade caracterizado por flutuação no humor, hipersensibilidade nas relações pessoais e instabilidade na autoimagem. A ideia é comparar os efeitos da substância às terapias atualmente utilizadas.
A MOLÉCULA DO ESPÍRITO
A DMT tem sido objeto de investigação científica há algum tempo. Entre 1990 e 1995, o psiquiatra norte-americano Rick Strassman realizou a primeira pesquisa com psicoativos em humanos em mais de 20 anos nos Estados Unidos, desde a promulgação da lei das substâncias controladas.
O trabalho deu origem ao livro DMT, a molécula do espírito, que trata do potencial clínico e de sua relação com experiências de expansão da consciência, sonhos e experiências de quase morte. Ao mesmo tempo, entre 1991 e 1996, pesquisadores sul-americanos iniciavam o Projeto Hoasca, no Acre, que avaliava os efeitos a longo prazo do chá em seres humanos.
De lá para cá, a pesquisa na área tem avançado rapidamente, especialmente aquelas com foco nas suas propriedades antidepressivas. No Brasil, entre 2010 e 2020, pesquisadores do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, ligados ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Translacional em Medicina (INCT-TM), realizaram estudos com humanos em que perceberam a redução dos sintomas depressivos nas primeiras horas de aplicação, com duração de 21 dias. No Instituto Cérebro, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), outro grupo de cientistas testou os efeitos da DMT em depressão resistente a tratamento, também obtendo resultados promissores.
OS MISTÉRIOS DO DMT
Apesar desses avanços, a molécula ainda é envolta em mistério. Do ponto de vista químico, DMT é uma estrutura muito simples e versátil, encontrada em inúmeros seres vivos, inclusive humanos. Mas se DMT está normalmente presente em humanos, ainda que em pequenas quantidades, por que não temos experiências psicodélicas com frequência? Os pesquisadores já descobriram que isso não ocorre porque o próprio organismo produz uma enzima que degrada a substância.
E aí entra a química no chá de ayahuasca: enquanto as folhas da chacrona fornecem a DMT, o cipó de mariri (outro vegetal presente no chá) fornece uma substância que neutraliza a enzima humana que degrada a DMT. É a junção das duas que estabelece o efeito psicoativo.
Ainda assim, fica o mistério: por que, afinal, plantas e mamíferos produzem uma substância psicodélica? Qual sua função nos seres humanos? Há inúmeras teorias sobre isso, e uma das mais famosas foi elaborada pelo próprio Strassman ao sugerir que, em humanos, a molécula poderia ser fabricada na glândula pineal e teria relação com as experiências de quase morte ou ainda com experiências místicas e de sonhos muito vívidos. No meio científico, no entanto, essa hipótese ainda está longe de ser consensual.
A SURPRESA QUE CONFIRMA A TEORIA
Um passo pequeno, mas importante, acaba de ser dado no sentido de entender o papel da DMT no corpo humano. Pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Química da UFC, em parceria com o Instituto Cérebro, da UFRN, conseguiram desvendar como ocorre a síntese da DMT no corpo humano.
Até então, sabia-se que, na base da DMT, estava o triptofano, um aminoácido essencial muito comum no corpo humano. Na via mais comum, dele resultam a serotonina (substância química relacionada ao bom humor e à sensação de felicidade) e, na sequência, a melatonina (hormônio responsável por regular o ritmo biológico do corpo). Bom humor e sono, portanto.
Há, no entanto, um outro caminho que o triptofano pode tomar, muito menos comum que o principal, e que resultará na DMT. Por esse caminho, o triptofano se transformará em uma substância chamada triptamina e, partir daí, vai receber dois átomos de carbono com três hidrogênios cada, o que os cientistas chamam de dupla metilação.
Utilizando química computacional complexa e conceitos da química clássica e quântica, os pesquisadores da UFC conseguiram demostrar como isso ocorre, bem como quantificar a quantidade de energia consumida nesse processo. O trabalho foi publicado em agosto na revista Biochemical and Biophysical Research Communications e tem como primeiro autor Lucas Pinheiro Coutinho e os pesquisadores Sérgio Ruschi, Pedro de Lima-Neto e Norberto Monteiro.
A informação da energia, aliás, chamou a atenção dos revisores da revista que, de início, acharam que ela estava errada por ser alta demais. “O que nós explicamos é que era exatamente isso que mostrava que os resultados estavam corretos. Porque, afinal, esse caminho de produção da DMT não é a via principal. Se desse baixo (o consumo de energia), a DMT acontecia no corpo humano com frequência, assim como formação da serotonina e melatonina”, explica o Prof. Norberto Monteiro, do Departamento de Química, um dos orientadores do trabalho.
A pesquisa abre caminho para entender como se dá a produção da DMT no corpo humano e abre espaço para a elaboração de um futuro fármaco, a partir do que os pesquisadores chamam de química verde. Enquanto isso, o mistério sobre por que produzimos a “molécula do espírito” e qual sua função nos seres vivos continua a desafiar a ciência.
SAIBA MAIS
Para ter acesso às pesquisas citadas nessa matéria:
Avaliação pré-clínica dos efeitos antidepressivos da DMT
Análise sobre a formação da DMT no organismo humano
Fontes: Prof. Norberto Monteiro – e-mail: norbertokv@ufc.br; Profª Danielle Macêdo – e-mail: danielle.macedo@ufc.br
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