Único domínio biogeográfico 100% brasileiro e predominante no centro do Nordeste e no Norte de Minas Gerais – ocupando em torno de 10% do território nacional –, a caatinga, historicamente, foi injustiçada no imaginário popular brasileiro. Retratada como uma paisagem degradada e sem água, solo ressequido e pobreza ambiental, ela abriga diversos tipos de vegetação adaptados à semiaridez que são, em verdade, bastante ricos em espécies e endemismos. Baseado na aparência em períodos de seca, quando a vegetação da caatinga perde as suas folhas, o estereótipo trouxe consequências para o maior domínio biogeográfico semiárido da América do Sul, sendo pouco valorizado, estudado e preservado ao longo dos séculos.
Nas últimas décadas, todavia, os cientistas têm se debruçado sobre a fauna e a flora da caatinga e descoberto que a “mata branca” possui muito mais cores do que define o nome de origem tupi-guarani. Um estudo publicado no periódico internacional The Botanical Review, do Jardim Botânico de Nova Iorque, coordenado por pesquisadores da Universidade Federal do Ceará (UFC) e em colaboração com cientistas de outras universidades brasileiras propõe novos mapas da Caatinga que destacam a riqueza e a distribuição de sua biodiversidade.
Coordenada pelo professor Marcelo Moro, do Instituto de Ciências do Mar (LABOMAR) da UFC, a pesquisa traz uma nova regionalização da caatinga, levando em consideração aspectos relacionados ao relevo e à distribuição das espécies que a habitam. Com isso, foram produzidos dois novos mapas: um geomorfológico, mostrando as grandes unidades de relevo da caatinga, e um biogeográfico, propondo a subdivisão da caatinga em pedaços menores, ou distritos biogeográficos.
“A caatinga não é uma coisa só, há muitas ‘caatingas’: há a dos terrenos rasos pedregosos da Depressão Sertaneja, a de areia nas grandes bacias sedimentares, como a do Tucano-Jatobá, onde ocorreu a guerra de Canudos, e há até as dunas continentais do rio São Francisco, no meio da Bahia, trazendo surpresas inesperadas ao viajante”, exemplifica o professor Marcelo Moro.
Ao todo, os mapas levaram oito anos para serem elaborados e contaram com contribuições de botânicos e geógrafos.
NOVA PROPOSTA DE DIVISÃO
Na proposta dos pesquisadores, a caatinga é dividida em 12 subunidades biogeográficas com particularidades próprias: Distrito Ibiapaba-Piauí, Distrito Araripe, Distrito Tucano-Jatobá, Distrito Dunas do São Francisco, Distrito Peruaçu, Distrito Potiguar, Distrito Borborema, Distrito Depressão Sertaneja Norte, Distrito Depressão Sertaneja Sul, Distrito Irecê, Província Chapada Diamantina e Região Costeira da caatinga.
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Nessa divisão é possível perceber a riqueza de paisagens e espécies do domínio, que compreende desde trechos úmidos, como os encraves de florestas dos brejos de altitude, até formações tipicamente costeiras e litorâneas, como campos de dunas, savanas e manguezais. “Há também na caatinga redes de cavernas, dunas continentais, afloramentos rochosos incríveis, serras, terrenos arenosos e terrenos pedregosos, grandes rios perenes, pequenos rios sazonais, lagoas sazonais, plantas aquáticas. Uma diversidade enorme de tipos de ecossistemas, a maioria deles adaptado ao clima semiárido, com várias espécies de animais e plantas que só existem na caatinga”, comenta Moro.
De acordo com os dados mais atuais, até hoje estão catalogadas mais de 3 mil espécies de plantas na caatinga, sendo que em torno de 500 delas são endêmicas, ou seja, só existem nesse domínio. No entanto, até a década de 1980, havia a ideia, até mesmo entre os cientistas, de que a caatinga era pobre em espécies e endemismos. “De fato, a caatinga, enquanto um dos grandes domínios de natureza do Brasil, sofreu muito preconceito e visões muito distorcidas. Essa riqueza incrível de paisagens é muitas vezes desconhecida pelos brasileiros, e as tristes e errôneas imagens de solo rachado e áreas desmatadas acabam aparecendo na televisão, sites de Internet ou mesmo livros como se fossem a caatinga”, destaca o pesquisador.
ALERTA SOBRE CONSERVAÇÃO
Além da proposta de atualização de dados e informações sobre a caatinga, um dos objetivos do estudo é chamar a atenção para a sua conservação. Apontam os pesquisadores que mais da metade da cobertura vegetal desse bioma já foi destruída como consequência de desmatamento, queimadas e corte de madeira. Outras ameaças são o mau uso da terra, a caça e o sobrepastoreio.
Enquanto na Amazônia há grandes áreas de proteção, na caatinga, apenas cerca de 8% têm algum grau de proteção legal, mas em sua maioria na forma de APAs (Áreas de Proteção Ambiental), que são as unidades de conservação menos protegidas. “Se tomarmos apenas as unidades de conservação de proteção integral (Parques Nacionais e Estaduais, Estações Ecológicas, Monumentos Naturais etc.), temos apenas 1,3% da caatinga protegida. É muito pouco”, avalia Moro.
Espécies animais e vegetais marcantes, como a onça-pintada, ainda presente na região da Serra da Capivara, a arara-azul-da-caatinga e a ararinha-azul, ambas endêmicas da caatinga, e até mesmo o cacto Tacinga mirim, descrito cientificamente no Ceará, em 2024, pelo pesquisador Marcelo Teles, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), correm o risco de desaparecer por completo caso não haja uma política de aumento de áreas protegidas. Os mapas elaborados na pesquisa, defende Moro, podem ser, portanto, aliados para a construção de políticas públicas de conservação para a caatinga.
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“Acho que nosso estudo pode direcionar a criação de novas unidades de conservação cobrindo os diversos subtipos de ecossistemas que temos dentro da caatinga. Em alguns distritos biogeográficos, temos forte pressão de desmatamento e praticamente nada de unidades de conservação. Sabendo disso, o poder público e a sociedade podem direcionar os esforços de criação de áreas protegidas em todos os distritos da caatinga, especialmente naqueles que são mais ameaçados”, sugere.
Outra alerta dos pesquisadores é em relação às áreas de caatinga no Ceará, que sofrem um processo avançado de degradação. “A caatinga é pouco protegida no geral e, no Ceará, é ainda menos”, afirma Moro. Segundo o pesquisador, é preciso pensar em um equilíbrio entre atividades econômicas e preservação de matas nativas.
“Só para dar uma ideia, os parques solares mais recentes que estão se instalando no estado costumam ser maiores que as novas unidades de conservação estaduais. Autorizamos de modo generoso a supressão de milhares de hectares para desmatamento, mas não estamos criando áreas protegidas em velocidade comparável, tendo um saldo negativo para a biodiversidade”, declara.
Além do professor Marcelo Moro, assinam o artigo Luciano Paganucci de Queiroz, da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS); Luis Costa, da Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES); Nigel Taylor, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR); Daniela Zappi, da Universidade de Brasília (UnB); além de Vivian Amorim, da Universidade Federal do Cariri (UFCA), e Rubson Maia, do Departamento de Geografia da UFC.
Fonte: Prof. Marcelo Moro, do Instituto de Ciências do Mar (LABOMAR) – e-mail: marcelomoro@ufc.br
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