Elas são partículas um milhão de vezes menores que um botão de camisa de um centímetro, mas se apresentam como promessa de um tratamento mais eficaz e com menos efeitos colaterais para uma das doenças que mais mata no Brasil e no mundo: o câncer de próstata. A utilização de nanopartículas para tratar esse tipo de tumor vem sendo investigada por diferentes pesquisadores da Universidade Federal do Ceará (UFC), e dois desses inovadores estudos acabaram de garantir cartas-patentes e avançam em busca de uma futura aplicação em seres humanos.
A primeira delas busca um tratamento mais seguro e eficaz para a doença em estágio mais avançado. Os pesquisadores desenvolveram lipossomas, que são pequenas bolsas de gordura biodegradáveis, invisíveis a olho nu, que podem encapsular substâncias, e são a classe de nanomedicamentos mais estudada e com resultados mais consistentes.
Na novidade trazida pelos cientistas, esses lipossomas encapsulam um fármaco anticâncer chamado de cabazitaxel. Além disso, na superfície desses lipossomas, está ligado um anticorpo chamado de cetuximabe, que faz o papel de “encaminhar” o fármaco para o local do tumor, onde ele será liberado.
O cabazitaxel é um medicamento que é usado em casos de câncer nos quais já ocorreu a metástase, ou seja, as células cancerígenas já se espalharam para além do local de origem do tumor. Nessas situações, os pacientes já não respondem a tratamentos convencionais. Já o cetuximabe é um anticorpo usado em alguns tipos de câncer, como o colorretal, e age causando a morte da célula tumoral, por meio da inibição de um receptor chamado de EGFR (Receptor do Fator de Crescimento Epidérmico).
Segundo o professor do Departamento de Farmácia Josimar de Oliveira Eloy, um dos autores do invento, os anticorpos possuem maior seletividade, isto é, atuam especificamente em um alvo, fazendo com que, no geral, o tratamento resulte em menos efeitos colaterais aos pacientes. Ele afirma que a estratégia de associar esse anticorpo a um lipossoma é “bastante promissora”, pois a referida seletividade permite reduzir a toxicidade dos quimioterápicos.
“São mecanismos de ação bastante diferentes, em alvos distintos. Enquanto o cabazitaxel age interrompendo a rede de microtúbulos nas células, o cetuximabe bloqueia uma via ligada à proliferação celular. Os mecanismos de ação são complementares, então os fármacos poderiam atuar de forma sinérgica”, explica o professor.
É como se o anticorpo fosse a chave, e a célula com câncer, a fechadura. Dessa forma, o anticorpo levaria o lipossoma que carrega o medicamento diretamente para células doentes. Lá, o lipossoma libera o fármaco de forma mais inteligente, fazendo com que tecidos sadios recebam menor quantidade desse químico. Isso pode representar um grande avanço, uma vez que os efeitos do cabazitaxel em células saudáveis são muito severos, podendo causar anemia, náusea, entre outros efeitos colaterais nos pacientes.
Os cientistas já testaram o tratamento em células saudáveis e com câncer de próstata (in vitro) e em camundongos (in vivo). Os resultados foram “muito positivos e animadores”, afirma Eloy. “Nossos estudos in vitro mostraram a maior toxicidade do nanomedicamento para células tumorais. É importante destacar que os estudos em camundongos provaram que a formulação desenvolvida foi mais eficaz que o medicamento comercial. Mas não podemos afirmar que o medicamento ataca apenas as células tumorais. A terapia 100% seletiva não existe”, pondera. Os achados estão descritos em artigo publicado na revista International Journal of Pharmaceutics.
Segundo ele, ainda são necessários mais estudos para que o tratamento possa ser testado com segurança em pacientes. “O desafio é bastante grande, pois precisamos cumprir outras etapas dentro das boas práticas de laboratório e pesquisa clínica, afinal, precisamos sempre pensar em um estudo seguro aos voluntários”, explica.
A pesquisa, coordenada por Josimar Eloy em parceria com a professora Cláudia do Ó Pessoa, do Departamento de Fisiologia e Farmacologia da UFC, foi financiada pelo Ministério da Saúde e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), através do Edital Pesquisas de Inovação em Saúde, e contou com o apoio da Biomanguinhos. Além deles, assinam como autores do invento os pesquisadores Raquel Petrilli Eloy, Elias da Silva Santos, Ana Carolina Cruz de Sousa, Bruno Rodrigues Arruda e Celina de Jesus Guimarães.
INSPIRAÇÃO NA MEDICINA POPULAR
A segunda invenção utiliza duas substâncias de origem natural no combate ao câncer de próstata, reunidas em uma nanoemulsão, que são dispersões de óleo em água ou água em óleo, com gotículas na faixa de 20 a 500 nanômetros. Para se ter uma ideia dessa proporção, basta saber que um nanômetro equivale a um milionésimo de milímetro.
A primeira substância é o ácido betulínico, originada do metabolismo de várias espécies vegetais, especialmente da bétula branca, árvore também chamada de vidoeiro-branco. Diversos estudos já identificaram que o ácido possui efeitos antitumorais significativos contra melanoma, câncer de próstata, câncer de mama, câncer colorretal e câncer de pulmão, contudo, a substância tem baixa solubilidade, o que restringe a sua aplicação e impede sua utilização como medicamento anticâncer.
Para solucionar essa questão, os pesquisadores decidiram encapsular o ácido betulínico em uma nanoemulsão que usa o óleo da Calotropis procera, planta utilizada na medicina tradicional de várias culturas e facilmente encontrada no semiárido nordestino, conhecida popularmente como “bombardeira”, “flor de seda”, “paina-branca”, “algodoeiro de seda” ou “bom-dia”.
“Considerando o potencial anticâncer e anti-inflamatório dessa planta, decidiu-se investigar a associação de seu óleo fixo com outras substâncias conhecidamente citotóxicas [isto é, que possuem a capacidade de destruir outras células ou tecidos], visando o desenvolvimento de alternativas terapêuticas mais seguras e eficazes para o combate do câncer”, explica Nágila Ricardo, professora do Departamento de Química Orgânica e Inorgânica e uma das autoras do invento.
A formulação da nanoemulsão foi realizada no Laboratório de Polímeros e Inovação de Materiais, do Departamento de Química Orgânica e Inorgânica, projeto que foi tema da tese de André Luiz Sousa, orientando de Nágila Ricardo. A nanoformulação, então, foi levada ao Laboratório de Oncologia Experimental da UFC, que investigou, em 2023, o efeito citotóxico da fórmula em diversas células tumorais. Foi nas células com câncer de próstata que a formulação apresentou resultados mais promissores.
Assim como o primeiro invento, este também promete uma ação mais direcionada a células doentes, protegendo as saudáveis. “A incorporação dos ativos em nanopartículas possibilita o desenvolvimento de abordagens com objetivo de garantir maior segurança e eficácia dos insumos, como a conjugação com moléculas que reconhecem apenas as células tumorais, liberação controlada, aumento do tempo de circulação na corrente sanguínea e redução de doses. Somadas, essas características permitem que os tratamentos apresentem menos efeitos colaterais”, explica a pesquisadora.
De acordo com a professora, a associação do óleo anti-inflamatório com o ativo, ambos naturais, em um sistema nanoestruturado seletivo é o diferencial do invento e pode servir de modelo para novos fármacos. Ainda não se sabe se a eventual terapia terá melhor performance quando associada à quimioterapia convencional ou quando utilizada isoladamente. “Espera-se que essas respostas sejam respondidas caso a tecnologia desenvolvida avance para as fases de validação e segurança em modelo animal e posteriormente clínica [em humanos]”, adianta a professora.
Além de André Sousa e de Nágila Ricardo, são autores do invento os pesquisadores Pedro Mikael da Silva Costa, Louhana Moreira Rebouças, Claudia do Ó Pessoa, Ícaro Gusmão Pinto Vieira, Francisco Marlon Fontenele Lemos, Victor Borges Fernandes e Deyse de Sousa Maia.
POR QUE A NANOTECNOLOGIA
A aplicação da nanotecnologia no desenvolvimento de novos tratamentos contra o câncer vem sendo estudada por pesquisadores da UFC pela capacidade única que a ferramenta tem de manipular materiais em uma escala microscópica, permitindo a criação de terapias mais precisas, eficazes e personalizadas.
“O uso de nanopartículas oferece diversas vantagens no tratamento oncológico, como uma entrega mais eficiente de fármacos, a redução dos efeitos colaterais e a melhora da resposta ao tratamento”, aponta a professora Cláudia do Ó Pessoa, que coordena o Laboratório de Oncologia Experimental do Núcleo de Pesquisas e Desenvolvimento de Medicamentos (NPDM/UFC).
A professora, que participa como autora dos dois citados inventos, informa que o laboratório, junto com outros pesquisadores da área da nanotecnologia, vem somando esforços para viabilizar a entrega direcionada de novos fármacos ou medicamentos. “As nanopartículas podem ser projetadas para transportar fármacos diretamente para as células tumorais, minimizando a toxicidade nos tecidos saudáveis e aumentando a concentração do medicamento no tumor”, reforça.
Fontes: professor Josimar de Oliveira Eloy, do Departamento de Farmácia – e-mail: josimar.eloy@gmail.com / professora Nágila Ricardo, do Departamento de Química Orgânica e Inorgânica – e-mail: naricard@ufc.br / professora Cláudia do Ó Pessoa, do Departamento de Fisiologia e Farmacologia – e-mail: cpessoa@ufc.br
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