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Na Tríplice Fronteira, a vida vai além da violência

Pesquisa da UFC mostra que os moradores de Tabatinga, Amazonas, têm muito mais para falar do que histórias de insegurança

No primeiro dia de 2017, o massacre decorrente de um motim no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, no Amazonas, deixou 56 mortos, em um conflito das facções criminosas aliadas Comando Vermelho e Família do Norte contra o Primeiro Comando da Capital (PCC). O acontecimento tem profunda ligação com o controle do narcotráfico que passa pela Tríplice Fronteira, onde o Brasil faz divisa com a Colômbia e o Peru, os dois maiores produtores de coca do mundo.

Uma das portas de entrada para o tráfico de drogas que chegam ao território brasileiro, a região traz lado a lado as cidades de Tabatinga (Brasil) e Letícia (Colômbia) e, do outro lado do rio Amazonas, o núcleo populacional de Santa Rosa de Yavari (Peru). Ali começa a chamada Rota Solimões, por onde o tráfico escoa parte dessa produção até Manaus e, de lá, para outros destinos nacionais e internacionais. A disputa pelo controle dessa rota, um negócio milionário, está relacionado à guerra entre as facções criminosas que atuam no País.

A cidade de Tabatinga é a casa de moradores com falas que vão além da insegurança e do medo. Foi o que constatou o Prof. Luiz Fábio Paiva, do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará, condutor de uma pesquisa que buscou compreender como os habitantes da região viam os constantes discursos sobre a violência.

Fronteira entre dois países em uma avenida com alguns motociclistas. Uma placa dando boas-vindas está no centro da passagem (Foto: Pasión Viajes)

Entre as cidades de Tabatinga e Letícia há apenas uma placa. A facilidade de entrada e saída gera discussões sobre a soberania nacional na cidade brasileira (Foto: Banco de Imagens/Pasión Viajes)

Marcado pelo estigma do tráfico, o município guarda um ar tranquilo, garante o pesquisador, que acompanhou a vida dos moradores da região de 2014 a 2016. O professor fez nove incursões, em visitas que duravam de 15 a 20 dias, para realizar pesquisas em profundidade com o moradores. Mesmo com o aumento no número de assaltos nos últimos anos, caminhadas são permitidas a qualquer hora do dia e da noite. Por isso, um mantra é repetido pelos moradores: “Aqui, a bala tem nome e endereço certo”.

“Em geral, é possível observar mortes violentas executadas por pistoleiros que têm relação com os esquemas de narcotráfico, entre outros problemas de segurança pública”, explica Luiz Fábio. Na maioria das vezes, os crimes de pistolagem são realizados por duplas em motocicletas, que realizam a ação em local público para deixar uma mensagem a todos os envolvidos nos esquemas de narcotráficos que passam pela região. Os pistoleiros são oriundos dos três países e sua ação é conhecida pela “eficiência” que imprimem ao assassinato.

“Há uma ideia muito presente de que é uma cidade abandonada pelo poder público e pelo mercado”

Mas, além da inegável influência da cocaína para a região, em um tráfico muito mais velado do que ostensivo, outros problemas de políticas públicas são pauta dos moradores. “Há uma ideia muito presente de que é uma cidade abandonada pelo poder público e pelo mercado”, comenta Luiz Fábio. A baixa empregabilidade, por exemplo, por conta da falta de boas oportunidades econômicas, é uma questão presente na cidade, principalmente para os jovens.

O isolamento da cidade em relação ao resto do Brasil gera dificuldades até mesmo no abastecimento de comida. Como a fronteira é aberta, muitos moradores compram seus gêneros na vizinha cidade colombiana, o que contribui para a sensação de terra abandonada. “Em uma das primeiras entrevistas que fizemos com policiais federais residentes em Tabatinga, eles diziam que ‘aqui tudo é contrabando’”, conta o professor.

A falta de infraestrutura de saúde é outro problema. O único hospital da região se encontra em Tabatinga, deixando a cidade de Benjamin Constant, acessível somente por via fluvial, dependente da vizinha. Além disso, o descaso com a população indígena que rodeia a cidade também foi observado. “São reservas que sofrem de maneira diferente da população branca os efeitos da inserção de drogas, inclusive do álcool. E as condições de vida são muito precárias”, alerta o pesquisador.

SOBERANIA

A convivência entre três países em uma mesma região gera um espaço de permanente discussão sobre a soberania nacional, principalmente no lado brasileiro. De maneira até discriminatória, alguns moradores de Tabatinga falam negativamente da presença de peruanos, alegando que os vizinhos, após lucrarem com o negócio da cocaína, investem na compra de comércios no Brasil.

A relação com a Colômbia é mais amistosa, segundo Luiz Fábio. Porém, no limite com a cidade de Letícia, uma placa na fronteira entre os dois países, contendo o antigo slogan do Governo Federal, “Um País de Todos”, era motivo de indignação para os tabatinguenses. “A sensação de que o Brasil está escancarado é muito presente no discurso dos brasileiros que vivem na fronteira. A ideia da população é de que ‘eles podem vir pra cá fazer tudo que quiserem, porque é de todos; não é nosso’”, explica o professor.

MONOPÓLIO DA VIOLÊNCIA

A presença policial na Tríplice Fronteira, incapaz de monitorar todas as atividades da região, não é suficiente para encerrar o tráfico, mas apenas para torná-lo menos visível na cidade. Mesmo as apreensões de drogas em circulação não indicam o controle do tráfico pelas forças policiais, visto que algumas delas são como “presentes” dos traficantes: enquanto um transporte de cocaína é propositalmente entregue à polícia, que se mobiliza para aquela ação, outros passam imunes. “A apreensão acontece hoje, amanhã o transporte vai de novo. Perdem-se centenas de toneladas, passam-se centenas de toneladas.”

As ações de controle do tráfico também são vistas pela população como ineficientes, uma vez que as apreensões e a captura de transportadores não eliminam o problema e não atingem os grandes narcotraficantes, que se mantêm distantes da droga em si. A performance das forças policiais seria, então, segundo os tabatinguenses, como o raio: “Cai em algum lugar, mas não em todo lugar, nem toda hora”.

Por isso, o Prof. Luiz Fábio considera que, diante das falhas do sistema judiciário e da segurança pública, além da falta de atenção às necessidades da população, apenas o aumento da força policial é incapaz de produzir efeitos concretos de combate ao tráfico. “Estamos em um momento em que não é mais suficiente rever a política pública; é preciso rever nossa existência como humanos e nação”, pontua.

CONHEÇA AS PESQUISAS

Fonte: Prof. Luiz Fábio Paiva, do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará – e-mail: luizfabiopaiva@gmail.com

Kevin Alencar 21 de junho de 2017

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