Estudos científicos estimam que hoje no mundo, em cada 45 partos, um deles é de uma criança que se encontra em algum nível do transtorno do espectro autista (TEA). Apesar do elevado número de casos, ainda não existe disponível um método exato de diagnóstico, prognóstico ou marcadores biológicos que possam predizer a condição. Porém, um grupo de pesquisadores da Universidade Federal do Ceará, em parceria com a Universidade Estadual do Ceará (UECE) e com o Instituto da Primeira Infância (IPREDE), iniciou, neste mês de maio, um estudo pioneiro no sentido de superar essa incerteza. A expectativa é que os resultados da pesquisa possam permitir, em alguns anos, a identificação do autismo de forma precisa e precoce, possivelmente já no teste do pezinho.
O autismo é um transtorno do neurodesenvolvimento ligado ao comportamento. Conforme o Prof. Sulivan Mota, do Departamento de Saúde Materno-Infantil da Faculdade de Medicina da UFC, o diagnóstico do transtorno é feito de forma subjetiva, através da observação das características no comportamento, o que só é possível de forma mais precisa em crianças de 2 anos e meio a 3, quando cedo.
O professor, que é também o presidente do IPREDE, é um dos integrantes do grupo de pesquisa que irá examinar o sangue e a urina de crianças nascidas na Maternidade-Escola Assis Chateaubriand (MEAC), com objetivo de buscar essa precisão no diagnóstico de maneira precoce. O intuito da investigação é verificar se, nesses fluidos, é possível identificar proteínas que sejam específicas de pessoas que se encontram dentro do espectro autista.
O Prof. Sulivan Mota informa que o estudo possivelmente será feito em parceria com outra universidade, analisando também crianças em segunda maternidade, para que se configure uma pesquisa multicêntrica, utilizando o mesmo protocolo rígido em uma quantidade maior de amostras. A terceira universidade ainda não está definida, mas o professor afirma que já existem muitas propostas.
Mesmo antes dessa confirmação, todavia, as análises já irão começar na MEAC. Como a maternidade realiza, em média, 600 partos ao mês, isso já permite um número de análises expressivo. A pesquisa será empreendida de forma longitudinal, ou seja, acompanhando as crianças ao longo de seu desenvolvimento, até que se chegue à fase em que se torne possível o diagnóstico clínico de TEA, a partir da observação do comportamento delas.
“Estamos sendo pioneiros no mundo, é impressionante isso. É o nosso Ceará”, comemora o professor, que afirma que o estudo deverá durar cerca de dois anos. “Mas uma pesquisa abre a possibilidade e necessidade para outras, não dá para dizer que essa será a definitiva”, considera.
PROTEÍNAS NA SALIVA
Essa será a segunda etapa de estudos com a população com TEA feita pela mesma equipe de pesquisadores. Na primeira, realizada de novembro de 2020 a novembro de 2021, foram analisadas amostras de saliva de 75 crianças atendidas pelo IPREDE, das quais 34 previamente diagnosticadas com TEA e outras 41 sem o transtorno.
A opção pela saliva se mostrou promissora com essa população pelo fato de a coleta ser pouco invasiva, não desestabilizando, assim, as crianças com TEA. “Utilizamos o salivette, que parece um chiclete, que a criança fica mascando. Não tivemos a menor dificuldade, talvez pelo movimento de repetição de que eles gostam. Então, através dele, colhemos a saliva, a centrifugamos e fizemos o estudo de proteínas”, relata.
Os resultados dessa pesquisa estão no recente artigo “Potential protein markers in children with Autistic Spectrum Disorder (ASD) revealed by salivary proteomics” (“Potenciais marcadores proteicos em crianças dentro do transtorno do espectro autista revelados por proteoma salivar”), publicado em fevereiro deste ano no International Journal of Biological Macromolecules.
O estudo buscou conhecer o proteoma da saliva, ou seja, o perfil de proteínas encontrado nesse fluido. O artigo proveniente dessa análise revela que foram identificadas 25 proteínas presentes somente em crianças com TEA. Essas proteínas também foram subdivididas em três grupos: o encontrado no espectro do autismo de forma geral, independentemente do grau; o identificado em crianças com autismo leve e moderado; e um terceiro, com proteínas detectadas naquelas com autismo severo. “Além de termos a especificidade pelo autismo, ainda tivemos uma determinação pelo grau em que essa criança está dentro do espectro”, aponta o Prof. Sulivan Mota.
Dessas 25 proteínas, 8 são consideradas pelos pesquisadores como possíveis biomarcadores, isto é, identificadores biológicos de pessoas com essa condição. O estudo conclui que essas 8 proteínas podem fornecer informações adicionais sobre os mecanismos moleculares envolvidos nas causas e no desenvolvimento do TEA. Após a divulgação dos achados, os pesquisadores passaram a receber convites de universidades de todo o mundo para proferir palestras e para elaborar prefácios de livros sobre o assunto, conta o Prof. Sulivan Mota.
Contudo, pondera o professor, a pesquisa realizada não é suficiente para afirmar que essas proteínas são, de fato, marcadores biológicos do transtorno, sendo necessários, para tal, novos estudos, com amostras ampliadas.
DIAGNÓSTICO PELO TESTE DO PEZINHO
A pesquisa com sangue e urina, portanto, é um novo passo em busca desse diagnóstico. Ela seguirá o mesmo princípio da investigação anterior, da saliva: a identificação do proteoma, agora com líquidos diferentes.
“Esperamos encontrar as mesmas proteínas, mas podem ser outras. Se as encontramos na saliva, é provável que elas estejam em todos os líquidos orgânicos. Por que não? Daí, esse será o grande achado, pois, se essas proteínas estão no sangue, por que não encontrá-las no teste do pezinho, que utiliza o sangue, não é?”, projeta.
O teste do pezinho é um exame médico utilizado para o diagnóstico precoce de várias doenças, como o hipotireoidismo congênito, a fibrose cística, síndromes falciformes, entre outras. O professor acredita que, em cerca de 10 anos, caso as hipóteses da pesquisa se confirmem, já será possível identificar o TEA nesse exame. Isso, destaca o professor, seria de grande importância, pois garantiria não somente um diagnóstico preciso, mas também precoce.
“A única certeza que se tem sobre o autismo é que, quanto mais precocemente se instala o tratamento, que é traduzido por estimulação, melhores os resultados. A criança não deixa de ser autista, pois o autismo é para a vida inteira, mas ela socializa melhor”, ressalta o professor.
IPREDE ATENDE CRIANÇAS COM TEA HÁ QUATRO ANOS
A assistência a pessoas dentro do espectro do autismo, no IPREDE, começou há quatro anos. Como todas as ações feitas no instituto são acompanhadas do braço da pesquisa, foram de imediato iniciados os estudos com essa população. Atualmente, o IPREDE – que abriga 26 projetos de extensão da UFC – atende 600 pessoas com TEA, de idades variadas, chegando a 19 anos.
O novo estudo será elaborado pelos mesmos integrantes do anterior, incluindo, por parte do IPREDE, Joana Clemente, diretora da instituição, além do Prof. Sulivan Mota, que também é docente da UFC. Ainda pela Universidade Federal do Ceará, estão os professores Benildo Cavada e Kyria Nascimento e os pesquisadores Messias Oliveira, Vinícius Osterne e Cornevile Correia Neto. Já pela UECE, participam os professores José Leal-Cardoso, Maria Izabel Guedes, Maurício van Tilburg e o pesquisador Abelardo Barbosa Neto.
Fonte: Prof. Sulivan Mota, do Departamento de Saúde Materno-Infantil da Faculdade de Medicina da UFC e presidente do IPREDE – e-mail: sulivan.mota@iprede.org.br