Segundo dados de 2017 do Conselho Global de Energia Eólica, o Brasil é o oitavo no mundo entre os países com o maior potencial de geração de energia eólica. Já os dados mais atuais da Associação Brasileira de Energia Eólica apontam que são 15 gigawatts de capacidade de produção, com 601 usinas instaladas no País, e estima-se uma redução de 28 milhões de toneladas por ano na emissão de dióxido de carbono, composto profundamente ligado ao aumento da temperatura global.
Por usar o vento como fonte, esse tipo de produção de energia é geralmente percebido como limpo e isento de questionamentos quanto à sustentabilidade. Porém, se promovida sem atender a certos requisitos, pode gerar impactos, nem sempre tão visíveis, nos âmbitos ambiental e social. É o que tem discutido o Laboratório de Geoprocessamento e Cartografia Social (LABOCART), no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Ceará.
Com estudos que culminaram no lançamento do livro Impactos socioambientais da implantação dos parques de energia eólica no Brasil, os pesquisadores avaliam que os complexos eólicos resultam em danos no entorno de onde são instalados (normalmente no litoral), com impactos diretos para a composição geoambiental dos locais e para as comunidades próximas.
No litoral, onde os ventos são mais fortes, é comum que os aerogeradores sejam instalados em regiões de dunas, que acabam sendo atingidas em sua morfologia, topografia e fisionomia, sobretudo pela necessidade de construção de vias de acesso aos geradores. Isso porque as áreas passam por desmatamento e soterramento de setores de dunas fixas, extinção e fragmentação de lagoas interdunares e terraplanagem.
A disponibilidade hídrica das regiões também acaba sendo afetada, já que há uma interferência na forma como recebem e armazenam a água. “As dunas são como uma porta de entrada da chuva. Elas filtram essa água e alimentam o lençol freático, que dá sustentação às lagoas costeiras e ao ecossistema de manguezal”, desenvolve o Prof. Jeovah Meireles, um dos organizadores da publicação.
O pesquisador ‒ que é coordenador de um dos projetos contemplados no edital do Programa Institucional de Internacionalização (PRINT), da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) ‒ explica que os estudos trabalham com a ideia de impactos cumulativos, com o aumento contínuo da ocupação pelos complexos eólicos sem os necessários cuidados ambientais.
“A ocupação extensiva desses sistemas ambientais, nessa corrida desenfreada, fragmenta, impermeabiliza e desmata os campos de dunas e o ecossistema manguezal. Nossa preocupação é com o que isso gera cumulativamente e de como isso interfere no modo de vida das comunidades tradicionais e povos indígenas, com violação de direitos e injustiça ambiental”, diz.
IMPACTO SOCIAL
Também graves são as interferências que a indústria eólica promove nas comunidades próximas aos locais escolhidos para instalação dos geradores. Por vezes invisibilizadas, essas populações ‒ por estarem em situação de fragilidade econômica e social ‒ acabam sofrendo com problemas como perda de território (por terem o acesso à região bloqueado) e mudanças na disponibilidade de recursos, além de situações de subemprego.
Essas se tornaram questões presentes, por exemplo, na comunidade litorânea da praia de Xavier, em Camocim (a 350 km de Fortaleza), que passou a ter de conviver com uma usina eólica em 2009. Além de o trânsito dos moradores ter ficado prejudicado, eles não puderam mais pescar em lagoas interdunares que deixaram de existir com a instalação dos geradores, causando déficit alimentar. A história é contada no documentário Cartografia social e energia eólica no litoral oeste do Ceará (abaixo).
“A empresa entra no território das comunidades, prejudicando o modo de vida e a subsistência delas, porque as populações se utilizam do próprio território para se manterem, como áreas usadas para extrativismo vegetal ou plantações. Rios e estuários foram desviados, prejudicando catação de caranguejos e mariscos. Isso afeta a sobrevivência das populações”, destaca a Profª Adryane Gorayeb, também organizadora do livro recém-lançado.
A construção de estradas (ou das próprias usinas) significa, para os moradores, ter casas com rachaduras, poeira excessiva e efeitos negativos na saúde, sobretudo de crianças e idosos. “Quando chove, o ambiente vira uma grande poça de lama, que vai para dentro das casas e aterra parte delas”, acrescenta Gorayeb, citando como exemplo a comunidade do Cumbe, em Aracati (a 160 quilômetros de Fortaleza). Ele ressalta ainda o problema do barulho causado pelas operações, o que representa um tipo de poluição.
Além da questão da empregabilidade (ponto levantado como positivo pelas empresas, mas que, na prática, dá às comunidades a oferta apenas de subempregos, já que a maioria dos postos nas usinas requer conhecimento especializado), os pesquisadores constatam também o fenômeno conhecido como “filhos dos ventos”.
“São crianças que nasceram de uma relação que ocorreu entre uma moradora, possivelmente menor de idade, com um trabalhador, que simplesmente vai embora depois de construído o parque eólico”, explica Gorayeb, que vê isso como um reflexo da entrada de pessoas alheias às populações locais no dia a dia das comunidades.
ALTERNATIVAS LOCACIONAIS
Como solução para as questões apontadas são propostas o que os pesquisadores chamam de alternativas locacionais, ou seja, a escolha de áreas onde a instalação dos geradores eólicos gere menos impactos tanto à geografia dos locais quanto às comunidades próximas. Essa escolha estaria baseada em estudos de viabilidade dos projetos e em critérios ambientais e sociais.
Seriam consideradas, por exemplo, áreas menos ocupadas pelas populações, mais distantes do litoral, onde não haveria necessidade desmatamento e a mudança na estrutura das dunas e com vias de acesso com maior permeabilidade, diminuindo a interferência no ciclo da água. A sugestão esbarra, porém, na ideia de que somente na costa litorânea haveria potencial energético suficiente.
A distância do litoral é vista como uma desvantagem por conta da descontinuidade do vento (diferentemente do que ocorre próximo às praias, onde o vento é forte mesmo em épocas de baixa intensidade em outras áreas).
“A única alternativa levada em conta é aquela que apresenta maior velocidade do vento [geralmente no litoral]. Mas já há tecnologias que captam rentavelmente energia com velocidades do vento bastante baixas, entre 4 ou 5 metros por segundo”, explica Meireles.
A obrigatoriedade de um estudo ambiental mais aprofundado também seria uma forma de evitar a instalação de usinas em locais com potencial negativo. Até 2014, era exigido das empresas apenas um Relatório Ambiental Simplificado (RAS) para instalação em áreas consideradas frágeis (como a região de dunas). Isso mudou quando a exigência passou a ser de Estudo de Impacto Ambiental (EIA), mais detalhado e criterioso do que o RAS.
Essa nova exigência veio com a Resolução nº 462/2014, do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA). No ano passado, porém, houve o que tem sido percebido como um possível retrocesso na legislação do Ceará, pela flexibilização na concessão de licenças para os parques eólicos, a partir da Resolução nº 05/2018, do Conselho Estadual de Meio Ambiente. Os efeitos práticos da mudança, porém, ainda estão sendo avaliados.
Os pesquisadores, contudo, reforçam que a energia eólica não deve ser descartada, uma vez que há um potencial energético grande a ser utilizado, proveniente de uma fonte limpa. “A energia eólica é importante, necessária, já que a matriz de consumo de petróleo está colapsando os sistemas ambientais com as emissões de CO2“, diz o Prof. Jeovah.
A utilização dessa energia limpa, entretanto, deve considerar também os impactos sociais e outras consequências por vezes negligenciadas. “É uma energia limpa porque não tem emissão de gases [causadores do efeito estufa], principalmente de CO2, mas não está isenta de impactos, especialmente relacionados a questões fundiárias”, finaliza a Profª Gorayeb.
PROJETO
Há um novo projeto sendo elaborado pelos pesquisadores, agora com o objetivo de comparar os impactos socioambientais da energia eólica com a mineração do lítio (considerada uma matriz de combustível de grande potencial pela indústria) na América Latina. O idealizador do projeto, que deve ser realizado em parceria com pesquisadores argentinos, é o Prof. Christian Brannstrom, da Texas A&M University, também organizador do livro.
Além disso, a formulação de parcerias com pesquisadores de Portugal está em andamento, por meio da Rede Brasil-Portugal (BRASPOR), o que deve propiciar transferência de conhecimento sobre os parques eólicos dos dois países.
SAIBA MAIS
O livro Impactos socioambientais da implantação dos parques de energia eólica no Brasil é um lançamento promovido pelo Observatório da Energia Eólica, do Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFC. O Observatório reúne grupo de pesquisas do Brasil que trabalham com o estudo dos impactos socioambientais envolvidos na indústria desse tipo de energia.
Fontes: Profª Adryane Gorayeb – e-mail:gorayeb@ufc.br; Prof. Jeovah Meireles – e-mail: meireles@ufc.br