No YouTube, um vídeo feito por uma menina impressiona pelos 58 milhões de visualizações e pelo conteúdo que traz: para que chegasse a tantas pessoas, bastou que a garota gravasse suas brincadeiras com uma boneca, que, durante a pequena história montada, sofre um “acidente” praticando tirolesa e aparece caída ao chão com sangue simulado pelo que parece ser ketchup.
O vídeo, do canal da jovem youtuber Juliana Baltar, é só um exemplo de como as crianças têm ganhado cada vez mais espaço na rede. O tipo de conteúdo publicado por elas tem sido pauta de discussões, que apontam como o YouTube se tornou não apenas um espaço de liberdade para falarem, mas também uma oportunidade de mercado explorado por grandes marcas.
Estudos do Laboratório de Pesquisa da Relação Infância, Juventude e Mídia (LABGRIM), vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal do Ceará, vêm avaliando a forma como essas crianças se apresentam na Internet e como a publicidade tem impactado o processo de profissionalização delas.
O LABGRIM mostra que, dos 100 canais brasileiros de maior destaque, 52 são de conteúdo voltado para a infância, feitos seja por adultos, seja pelas próprias crianças, como é o caso dos canais de Juliana Baltar, Julia Silva, Bel para Meninas e Manuela Antelo, todos analisados pelo laboratório.
“Elas vêm de um processo que começa de forma despretensiosa e passam a construir disso uma rotina, com estrutura inclusive de agências”
A explicação para esse fortalecimento de youtubers infantis é que, com a Internet, há uma mudança na construção de novos astros, em que a TV perde força. “A criança muito pequena tem os pais como ídolos. Com a adolescência, ela se desvincula do núcleo familiar, olha a seu redor e observa o que oferece reconhecimento ou não”, esclarece a Profª Inês Vitorino Sampaio, uma das coordenadores dos estudos.
Um fator percebido pelas pesquisas é que, dentre as diversas youtubers mirins, as que se tornam mais populares são as que trabalham com marcas de produtos infantis, com a publicidade oferecendo suporte. Isso ocorre, por exemplo, por meio dos vídeos com avaliações de brinquedos recebidos pelas meninas ou da divulgação direta das empresas.
Nesse contexto, o LABGRIM observa uma nítida evolução na profissionalização das crianças, que passam a ter uma carreira gerenciada. “Elas vêm de um processo que começa de forma despretensiosa e passam a construir disso uma rotina, com estrutura inclusive de agências”, afirma a Profª Inês.
POTENCIALIDADES E CONTRAPONTOS
Com a produção e publicação de vídeos, a pesquisadora entende que há a criação de um local de expressão própria para a criança. “Há um aprendizado, e elas inauguram um espaço na vida pública que não era tão usual, em que elas podem falar do que gostam e não gostam, do que brincam e do que mais tiverem vontade de falar”, justifica.
Desse modo, algumas potencialidades são percebidas. “As crianças que fazem vídeos, em geral, se desenvolvem muito do ponto de vista comunicacional, ganham habilidades, se expressam melhor e constroem uma relação com o público. Justamente em função de precisarem criar, elas aprendem e descobrem coisas novas e interessantes. E ter um espaço de voz na esfera pública é maravilhoso”, defende a pesquisadora.
A criança acaba sendo roteirizada, por vezes produzindo conteúdo puramente publicitário em vez da brincadeira que a fez ser youtuber
O contraponto é que essa criação de espaço, quando se inicia o processo de profissionalização, vem acompanhada de um engessamento da forma como a criança se manifesta. Além do controle dos pais, há o controle gerado pelas marcas e pela publicidade, que pode resultar na criança reverberando um discurso que não é próprio dela.
Assim, segundo a Profª Inês, a criança acaba sendo roteirizada, por vezes produzindo conteúdo puramente publicitário em vez da brincadeira que a fez iniciar a vida como youtuber. O exercício desse controle, porém, é também mediado. “Eles [pais e empresas] têm noção de que se enquadrarem a criança a ponto de ela perder qualquer espontaneidade, ela perde o encanto que é capaz de levar para as outras”, ressalta.
Além disso, os vídeos também tornam patente a desigualdade social existente entre crianças de diferentes classes, por diversas vezes explorarem um mundo comercial inacessível para as classes mais pobres. “Esse é um país em que temos 50 milhões de crianças e adolescentes na linha da pobreza. E elas [as crianças] estão vendo vídeos de youtubers celebrando festas suntuosas, fazendo viagens, visitando hotéis”, argumenta a professora.
PUBLICIDADE
Outro problema tem sido o excesso de campanhas publicitárias e a forma como elas são veiculadas. O entendimento hoje entre os pesquisadores é que haja um direcionamento das publicidades para os pais, não para as crianças. No YouTube, isso se torna mais complexo, uma vez que nem sempre a barreira entre o que é conteúdo próprio ou mercadológico está visível, já que se misturam.
São comuns, por exemplo, os vídeos de unboxing (desembalar, em inglês), nos quais a criança recebe um produto e, gerando expectativa no público, grava em vídeo o momento em que o tira da embalagem, ao mesmo tempo que o divulga. “Às vezes, a criança diz que o produto que ganhou é uma surpresa, mas, antes mesmo de abrir, ela já anuncia o que tem dentro da caixa. Há muitas brechas em que percebemos o vínculo publicitário”, explica a Profª Inês.
Em pesquisa anterior, o LABGRIM coletou relatos sobre a opinião de crianças de 11 e 12 anos acerca da publicidade infantil em geral. Enquanto algumas diziam gostar, outras se mostravam incomodadas pela intensidade com que os anúncios surgiam. “Na Internet, algumas delas aprendem a pular o anúncio, mas há situações em que elas nem reconhecem o que de fato é publicidade”, afirma.
Em uma nova fase da pesquisa, o laboratório irá analisar youtubers mirins sem o mesmo perfil de alta popularidade, que não tenham o discurso guiado pela publicidade, com foco nos canais de temas ideológicos. “São youtubers com uma causa. Sabemos que há alguns que são veganos, que discutem literatura, cultura afro”, exemplifica.
O LABORATÓRIO
O LABGRIM trabalha há mais de 10 anos com pesquisas multidisciplinares voltadas para o estudo da relação de jovens e crianças com a mídia. Atualmente, o laboratório é coordenado pela Profª Andrea Pinheiro Paiva Cavalcante, do Instituto UFC Virtual. Acesse o site para saber mais.
Fonte: Profª Inês Vitorino Sampaio, do LABGRIM – e-mail: inesvict@gmail.com