A experiência de passar por um adoecimento como o câncer de mama vai além dos tratamentos e riscos à saúde, gerando a chamada ruptura biográfica: uma situação traumática que muda a percepção de vida da própria pessoa. Sendo a principal neoplasia a atingir mulheres, a doença envolve fatores como autoestima feminina, estigmatização, revisão de valores e fortalecimento de si mesma. Tais questões têm chamado atenção do Laboratório de Psicologia em Subjetividade e Sociedade (Lapsus), do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará.
Trata-se de uma pesquisa que busca analisar a experiência do câncer de mama e as narrativas do adoecimento entre usuárias do Instagram, plataforma de compartilhamento de fotos. A ideia foi observar como as mídias digitais podiam transformar o processo de viver a doença.
Na pesquisa, de metodologia qualitativa, foram analisadas 10 contas de usuárias do Instagram voltadas ao compartilhamento de imagens relativas ao câncer de mama. Foram selecionadas 30 postagens, buscando-se identificar temas, enredos e outros aspectos nas interações dessas mulheres no ambiente digital. Três categorias de publicações puderam ser constatadas: transformações no corpo (principalmente por conta da quimioterapia); feminilidade e beleza; e tratamento e itinerário terapêutico (conjunto de ações voltadas ao tratamento da doença).
A Profª Idilva Germano, coordenadora da pesquisa, explica que, se o câncer antes era vivido de forma privada, sendo compartilhado apenas entre familiares e médicos, hoje, essas redes possibilitam uma nova forma de enfrentar a doença. Encorajadas pelos usuários que as seguem, as mulheres tornam públicas as experiências pelas quais passam, tanto no intuito de apenas se apresentar e contar suas histórias quanto no de prestar apoio a quem vive em situação similar.
As interações na rede social podem levar as mulheres a adotar certas narrativas dominantes, como a da exigência de ser forte e vencedora. “Há muitas histórias positivas, de heroísmo, enfrentamento e resiliência, criando uma imagem de si como guerreira”, avalia a Profª Idilva. É comum lidar com os medos e as incertezas que o câncer traz por meio de imagens que reforcem a ideia de que estão no controle da própria saúde: em contraponto ao sofrimento que a neoplasia costuma causar, a pesquisadora conta que sorrisos estão sempre presentes nas postagens, junto a mensagens de superação e perseverança.
“Há uma expectativa do público para o qual elas se dirigem de realmente ouvir essas histórias e ver essas imagens. As pessoas parecem não estar abertas a acompanhar imagens que não sejam evocativas de felicidade”, observa, a partir da análise dos comentários que acompanham as postagens. Para a pesquisadora, o contexto interativo das redes sociais constantemente solicita a essas mulheres que se mantenham confiantes, felizes e positivas em todo o percurso do tratamento. Isso tem sido chamado de “positividade cor-de-rosa”.
FEMINILIDADE E BELEZA
O aspecto da feminilidade e beleza, segundo a professora, também é um dos mais fortemente encontrados nas postagens. Não é incomum, por exemplo, que, mesmo em situações adversas, como pouco antes da quimioterapia ou dos exames de imagem (ressonância magnética ou mamografia, por exemplo), as usuárias posem maquiadas e com adereços. Por isso, também, a grande prevalência dos autorretratos, as chamadas selfies.
“Há uma preocupação enorme das mulheres em se manter belas durante o tratamento. É um discurso que veicula a beleza feminina quase como um imperativo para a cura”, ressalta Idilva. Apesar de ser entendido muitas vezes como um fator que contribui para o bem-estar da mulher, esse aspecto também pode ser problemático, uma vez que pode favorecer a manutenção e a reprodução de normas tradicionais de gênero consideradas “naturais” ao sexo feminino. Esse ponto tem sido assinalado por estudos de orientação feminista.
Diferentemente do que acontece com as mulheres, a exigência de se manter belo mesmo durante o adoecimento por câncer não é feita aos homens. A professora argumenta que muitas imagens encontradas pela pesquisa indicam que as mulheres frequentemente são convocadas a cumprir certos papéis sexuais tradicionais e estereótipos de feminilidade, mesmo em uma circunstância que pode ser profundamente angustiante do ponto de vista existencial, pela expectativa da mortalidade. “Mesmo assim, elas se sentem obrigadas a ficar belas para o olhar alheio”, diz.
INFORMAÇÕES NAS REDES
Outra constatação da pesquisa está relacionada à busca de esclarecimento proporcionada pelas redes sociais: pessoas enfermas têm, hoje, muito mais opções de informação sobre diagnósticos, exames e formas de tratamento do que as consultas ao médico, embora tais fontes nem sempre sejam precisas e seguras do ponto de vista científico.
Apesar do risco de os pacientes confiarem demasiadamente no “Dr. Google”, como advertem os profissionais de saúde, entre as pacientes de câncer de mama o ambiente digital provê uma troca incessante de dados úteis ao cotidiano das enfermas, bem como uma rede complexa de apoio emocional. Nas redes sociais, as mulheres procuram e oferecem suporte para o enfrentamento da doença.
Uma das pesquisadoras que integram a equipe discente é a mestranda Maria Camila Gabrielle Moura, que teve diagnóstico de câncer de mama em 2015. Agora, curada, ela se dedica a estudar o assunto no mestrado. Logo que adoeceu, Camila resolveu divulgar nas redes sociais sua enfermidade a fim de evitar possíveis perguntas sobre os sintomas do tratamento que logo iriam surgir – como a queda de cabelo.
O resultado a surpreendeu, pois milhares de pessoas passaram a segui-la no Instagram. Camila observou que as redes sociais, de fato, desempenham um papel muito importante para troca de conhecimento e apoio e solidariedade. Além de Camila, também participam do trabalho as pesquisadoras Débora Brenda de Sousa, Silvana Nazaré Silva, Stephanie Lima e Ana Cesaltina Marques.
“Isso cria um tipo de representação do que é ter a doença hoje: algo que as pessoas têm condição de suportar e é contornável”
“As pessoas que seguem essas contas buscam muita informação testemunhal das mulheres. Elas procuram trocar ideias, por exemplo, sobre coisas que podem ajudar nos enjoos causados pelas terapias, ou medicamentos e alternativas para o bem-estar”, explica a Profª Idilva. Isso acaba estimulando a exposição autobiográfica sobre a doença, antes reduzida à vida privada.
Nesse sentido, a pesquisadora acredita que o compartilhamento dessas histórias e informações contribui de forma positiva para o modo de lidar com a enfermidade. “Isso cria um tipo de representação do que é ter a doença hoje, que não é um bicho de sete cabeças, mas algo que as pessoas têm condição de suportar e é contornável”, avalia.
Outra crítica, entretanto, consiste no fato de que predomina hoje um discurso que prega a autorresponsabilização individual sobre a saúde e que também veicula uma falsa noção de que se pode efetivamente controlar o adoecimento, uma vez atendido um conjunto de prescrições: fazer exames regulares, exercitar-se, comer saudavelmente, evitar o fumo e o estresse e assim por diante.
Para a Profª Idilva, os avanços tecnológicos no campo da saúde podem frisar demasiadamente que “se uma pessoa doente for ao médico e se cuidar direitinho, ficará curada”. Essa expectativa nem sempre é realista e pode gerar, além de frustração, um sentimento de culpa: “A pessoa pode imaginar que é responsabilidade dela ficar curada e que é culpa sua se isso não ocorrer.”
A pesquisadora avalia que a análise das interações de doentes em redes sociais amplia o olhar sobre os efeitos das novas tecnologias sobre as experiências de saúde e doença na sociedade contemporânea. No caso dessa pesquisa sobre o câncer de mama, reconhece que devemos observar tanto os aspectos positivos gerados pelas novas formas de comunicação (por exemplo, redução do estigma da doença, maior acesso à informação, mais espaços para solidariedade e apoio mútuo) quanto os negativos (imperativo de felicidade, culpabilização da mulher, normatividade de gênero), que também atravessam esses meios. “Esse é um campo emaranhado de tensões que devemos desenredar”, conclui.
Fonte: Prof. Idilva Germano (idilvapg@gmail.com), do Departamento de Psicologia da UFC – (85) 3366-7723 / 3366-7722
Laboratório de Psicologia em Subjetividade e Sociedade