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“Novo cangaço” se expande pelo País e une velhas práticas à profissionalização do crime

Pesquisadora do Laboratório de Estudos da Violência (LEV/UFC) entrevista cerca de 60 assaltantes envolvidos nas violentas investidas contra bancos no Interior do Brasil e elabora o perfil deste fenômeno do crime

No mês de abril, Mococa, um pequeno município no interior de São Paulo, sofreu um ataque ultraviolento orquestrado por quadrilhas a agências bancárias, tornando-se, assim, a 30ª cidade daquele Estado a ser alvo, desde 2018, do chamado “novo cangaço”. Esse fenômeno, que já rompeu as divisas do Nordeste, vem unindo antigas práticas do banditismo a uma crescente profissionalização do crime. Os cangaceiros de antes dão lugar a quadrilhas interestaduais, com forte planejamento nas ações e equipamentos suficientes para subjugar polícias locais.

A audácia dos criminosos, assim como uma postura afrontosa diante das forças policiais, é o que caracteriza tais ataques, explica a Profª Jania Perla Diógenes de Aquino, do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará. Desde o ano 2000, ela estuda os assaltos a bancos e, a partir de 2017, passou a direcionar seus estudos a essas abordagens mais chamativas, que identificam o “novo cangaço”. 

“Desde os grupos de cangaceiros, atuantes no Nordeste e norte mineiro na primeira metade do século XX, não se tinha observado no Brasil postura ou modus operandi similares. O mais recorrente é que praticantes de crimes, seja em ações individuais, seja coletivas, evitem as polícias ou fujam delas”, observa a pesquisadora, que é integrante do Laboratório de Estudos da Violência (LEV) da UFC. 

O aumento do poder aquisitivo das populações de cidades pequenas e médias do Interior brasileiro, a partir da década de 2000, motivando a criação de agências bancárias nessas localidades, e a falta de infraestrutura e preparo policial fora das regiões metropolitanas seriam os principais motivos do avanço desse fenômeno do crime, avalia Jania Perla. Os equipamentos mais modernos e potentes, tal como os grupos táticos das forças de segurança pública, aponta ela, costumam se concentrar nas capitais dos estados, “de modo que o tempo que se leva para enviar reforços ao Interior, quando ocorrem assaltos desse tipo, costuma ser longo”, justifica.

A Profª Jania Perla Diógenes de Aquino estuda assaltos a bancos desde o ano 2000 (Foto: Arquivo pessoal)

No decurso destes anos de pesquisa, a professora manteve interlocução e diálogo com quase 60 assaltantes, além de entrevistas com policiais e delegados da Polícia Civil e agentes da Polícia Federal, reunindo um material que lhe permitiu entender o perfil dessas atuações criminosas. Parte desses achados é trazida no artigo “Violência e performance no chamado ‘novo cangaço’: cidades sitiadas, uso de explosivos e ataques a polícias em assaltos contra bancos no Brasil”, publicado recentemente no periódico científico Dilemas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

O artigo aponta que as investidas nas quais cidades inteiras são sitiadas, como ocorre nas abordagens do “novo cangaço”, tornaram-se corriqueiras na região Nordeste em meados dos anos 2000. Uma década depois, as ocorrências inspiradas nessas ações abruptas e barulhentas têm apresentado elevada incidência em todo o País, especialmente em cidades de pequeno e médio portes, cujo efetivo policial e equipamentos de segurança pública podem ser superados pelas quadrilhas. 

O estardalhaço e a violência física desprendidos nessas investidas podem gerar, em quem observa, uma noção de despreparo desses grupos em relação a outros com ações mais silenciosas, como a do cinematográfico roubo do Banco Central em Fortaleza, em 2005. Entretanto, as ofensivas criminais do “novo cangaço” geralmente são bem-sucedidas, tanto nos valores roubados quanto na fuga dos participantes, e tais resultados não se dão por sorte. 

Antes das abordagens, as quadrilhas costumam pesquisar o efetivo policial da cidade onde vai ser realizado o assalto, a movimentação de valores e a rotina de funcionamento das agências bancárias locais. Essa coleta de informações é uma das razões para o sucesso das investidas, da mesma maneira que o tamanho das quadrilhas, seus armamentos e demais investimentos em logística. 

A “performance” truculenta e espalhafatosa, portanto, é uma característica programada pelas quadrilhas com o objetivo de constranger, assustar e submeter reféns e eventuais oponentes dos assaltantes ‒ e faz com que seus integrantes sejam chamados de “açougueiros” e “pistoleiros” entre seus pares no universo do crime.

A Profª Jania Perla informa que, ainda que tenham se tornado mais comuns a partir da década de 2000, as primeiras ocorrências do tipo ocorreram ainda no fim da década de 1990. A quadrilha pioneira nesses assaltos mais truculentos, baseados no domínio de cidades inteiras, foi a dos irmãos Carneiro, do interior do Rio Grande do Norte. 

PROFISSIONALIZAÇÃO

Mas, na década seguinte, tais quadrilhas de assaltantes, que abrigam integrantes de antigas famílias de cangaceiros e pistoleiros, passaram a representar apenas uma pequena parcela dos agrupamentos. Desde então, esses grupos são caracterizados por uma forte profissionalização e por reunir assaltantes de diversas partes do País, que se juntam para uma abordagem específica e depois, após a concluírem, desarticulam-se.

Cada integrante do grupo tem sua função específica, com base em sua expertise. Entre os participantes, há “soldados”, “arrombadores”, “motoristas”, “explosivistas”, entre outros “especialistas”. “Com o aumento da demanda pelo material por parte das quadrilhas de assaltantes, teriam sido montadas fábricas clandestinas de explosivos no Nordeste com clientes em todas as regiões do país. Mas não se trata de uma logística de uso fácil, é preciso técnica no tratamento e manuseio das emulsões. Algumas quadrilhas contratam os chamados explosivistas, agentes ou ex-agentes das Forças Armadas que fazem cursos específicos para o manuseio desse material ou ainda pessoas treinadas por esses profissionais”, esclarece o estudo.

ESTRATÉGIAS

As ofensivas geralmente são feitas de madrugada, como as realizadas nos municípios cearenses de Graça e Irauçuba, em 2019. O horário é preferido por ter menor movimentação nas ruas e também pelo fato de que delegacias e quartéis funcionam com efetivos em quantidades reduzidas nesse período do dia, garantindo vantagem em número de homens para as quadrilhas.

E aqui se fala em “homens” porque, no “novo cangaço”, não existem “marias-bonitas”, apenas “lampiões”, conforme conclui a Profª Jania Perla, que atesta que a participação de mulheres em tais ações não foi registrada. “Essas ocorrências envolvem performances caracterizadas pela dramatização cênica de algo como uma ‘disposição viril de matar’”, declara a pesquisadora, que diz ter constatado nas entrevistas com os assaltantes “a percepção de si e dos seus comparsas como ‘machos’, ‘valentes’ e ‘implacáveis’”.  

Realizar duas ou mais abordagens simultâneas é outra estratégia que vem sendo empregada por esses grupos para desarticular a reação policial. Essa prática foi adotada no ataque em Milagres, no Ceará, em 2018. Na ocasião, 14 pessoas morreram, entre assaltantes e reféns. Segundo a Profª Jania Perla, desde aquele ano, os confrontos entre polícias e assaltantes têm sido registrados com maior frequência, gerando mortes e comoção. 

REDUÇÃO DOS CASOS

No ano passado, segundo dados da Federação Brasileira de Bancos (FEBRABAN), houve 58 tentativas de assalto a bancos e agências bancárias no Brasil, um número 52,26% inferior ao de 2019. Entretanto, esses delitos persistem e, conforme autoridades da Polícia Federal, a distribuição do auxílio emergencial, diante da pandemia da covid-19, foi apontada como uma das principais motivações para a execução dessas ações em 2020.

A FEBRABAN argumenta que essa queda é resultado direto dos investimentos feitos pelo setor em tecnologia e capacitação de pessoal, além da interlocução e colaboração com as autoridades policiais de todo o Brasil. A professora da UFC, contudo, considera que essa redução pode estar relacionada à quantidade de mortes resultantes das trocas de tiros entre policiais e quadrilhas em 2018 e 2019. 

ASCENSÃO SOCIAL

A ideia do “banditismo social”, associada por pesquisadores aos grupos de cangaceiros do Nordeste, não encontra, todavia, reflexo hoje nas atuais quadrilhas que herdam o nome do cangaço. Se antes havia uma perspectiva de resistência camponesa à emergência do capitalismo agrário, os atuais grupos, formados por integrantes que não necessariamente possuem relação com as localidades dos ataques, estão mais focados na expectativa de ascensão social por meio do crime. 

O novo cangaço, analisa o estudo, virou um empreendimento no qual os assaltantes atuam como “empresários”, movimentando fartos recursos financeiros e elaborando planos de crimes e fugas. “Até hoje, mantive interlocução e diálogo com quase sessenta assaltantes, e a maioria significativa dos meus entrevistados declara buscar ascensão social. Não ouvi nenhum deles defender a violência ou crime como um valor ou caminho ‘correto’ a ser seguido”, conta a pesquisadora. 

E se havia certa cumplicidade entre os antigos cangaceiros e a população local, no “novo cangaço” os bandidos deixam claramente consequências negativas às localidades em que atuam. Muitas cidades ficaram, após os ataques, sem agências bancárias, obrigando as populações a fazer longos trajetos para realizar transações financeiras. Para além das mortes registradas, fica ainda o impacto psicológico daqueles que tiveram o azar de ser usados como reféns dos novos cangaceiros.

Fonte: Profª Jania Perla Diógenes de Aquino, do Departamento de Ciências Sociais da UFC – e-mail: perladiogenes@hotmail.com

Sérgio de Sousa 15 de junho de 2021

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