Mulheres grávidas tendem a apresentar com maior frequência transtornos mentais comuns (TMC), tais como crises de pânico e de ansiedade, insegurança e estresse pós-traumático, conforme apontam estudos internacionais. A pandemia, contudo, alçou esse quadro a um outro patamar de gravidade. Pesquisa desenvolvida em Fortaleza pela Universidade Federal do Ceará, em parceria com a Universidade de Harvard, concluiu que os sentimentos negativos despertados pela covid-19 fizeram elevar em até três vezes a prevalência de tais problemas entre as pessoas desse grupo.
Para chegar ao resultado, foi realizado um levantamento com 1.041 gestantes das então 6 regionais de Fortaleza (neste ano, passaram a ser 12), com idades entre 16 e 48 anos. Os dados foram colhidos em abril e maio do ano passado, logo após as autoridades declararem o lockdown na cidade, e estão apresentados no artigo “COVID-19 and mental health of pregnant women in Ceará, Brazil” (“Covid-19 e saúde mental de mulheres grávidas no Ceará, Brasil”, em tradução livre), publicado em maio deste ano pela Revista de Saúde Pública.
“Os resultados foram assustadores, pois apontaram uma prevalência de 45,7% [de TMC entre as entrevistadas], muito acima do que as outras pesquisas revelavam”, informa a Profª Márcia Machado, da Faculdade de Medicina da UFC e uma das responsáveis pelo estudo. O percentual foi a média registrada entre as pessoas entrevistadas. As que revelaram ter medo da covid-19 mostraram riscos até três vezes maiores de apresentar transtornos mentais em comparação àquelas que não nutriam tal sentimento.
Há 30 anos, a UFC realiza a Pesquisa de Saúde Materno-Infantil no Ceará (PESMIC), através da qual, a cada quatro anos, cerca de 8 mil famílias são entrevistadas em várias cidades do estado. A última edição do estudo, de 2017, revelou que a prevalência desses transtornos mentais em mulheres grávidas era em torno de 20% a 25%.
Para a professora, as mulheres sofreram um impacto maior com a pandemia não somente por terem de manter o isolamento de outros familiares em um período no qual há uma busca mais intensa por interação para compartilhar as expectativas e medos comuns da gravidez. “O acesso aos serviços públicos e privados ficou dificultado; havia o medo de que a criança pudesse ter efeitos negativos na sua formação (diante de um vírus novo, do qual pouco se conhecia sobre os efeitos no feto, por exemplo), sem contar que o desemprego foi crescente. Tudo isso impactou diretamente o estado emocional dessas mulheres”, analisa.
A saúde mental de gestantes deve ser motivo de preocupação ainda maior por conta das consequências físicas que problemas psicológicos podem trazer a elas e ao bebê. O artigo aponta que transtornos como ansiedade e depressão podem desencadear complicações como aborto espontâneo, parto prematuro, baixo peso do bebê ao nascer, menor duração do aleitamento materno, déficit de crescimento e atraso no desenvolvimento infantil. Márcia Castro, professora titular da Harvard School of Public Health, que também assina o estudo, afirma que várias mulheres apresentaram, no período do isolamento social, intercorrências que trouxeram agravamento ao itinerário da gravidez.
SINTOMAS DOS TRANSTORNOS
“Muitos sintomas, como falta de ar, taquicardia (coração acelerado), suor nas mãos, perda de sono, choro frequente, perda de apetite, alterações trombóticas, dentre outros, não são levados muito em consideração pelas pessoas próximas. E isso vai se somando até o ponto em que as mulheres entram num estágio tão grave de transtornos emocionais que altera todo o percurso da gravidez”, destaca a pesquisadora.
Segundo Márcia Castro, não somente os profissionais de saúde mas os familiares devem estar atentos a essas alterações, por serem “um termômetro” que sinaliza que algo não vai bem. “Precisamos, mais do que nunca, dar ouvidos e atenção a essas mulheres”, defende.
As professoras sustentam que, apesar dos grandes avanços que ocorreram com a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), há 33 anos, o acesso à saúde ainda é precário para populações mais carentes. Durante a pandemia, esse acesso ficou ainda mais complicado, fato que refletiu nos resultados da pesquisa.
Márcia Machado e Márcia Castro criticam a falta de um planejamento nacional por parte do sistema de atenção primária à saúde para que essa população tivesse prioridade de acompanhamento domiciliar. Elas apontam que faltou treinamento dos agentes comunitários de saúde, das equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF), para que fosse oferecido suporte, equipamentos de proteção individual (EPIs) e um sistema de vigilância imediato e com protocolos a serem adotados em todo o território brasileiro. “Todos esses problemas acabaram gerando um impacto negativo aos serviços, que não se organizaram para dar uma resposta mais rápida”, considera a professora de Harvard.
EXCESSO DE MÁS NOTÍCIAS
Buscar informações em eventos de crise, como o caso da pandemia, é algo comum e inclusive saudável, para que as pessoas possam se informar como se prevenir de forma correta. Por outro lado, o estudo revelou que acompanhar notícias e histórias pelas redes sociais e TV pode elevar a manifestação de sentimentos negativos em mulheres grávidas. Isso porque a exposição a um número elevado de notícias negativas pode fazer com que as pessoas se sintam ansiosas ou estressadas.
“Os meios de comunicação e as redes sociais utilizaram muito do tempo para divulgar as mortes de uma forma muito frequente, mas poucas eram as informações educativas, sobre os modos preventivos. Com isso, as mulheres ficaram muito mais expostas às más notícias, às fake news, que as abalaram demasiadamente”, considera a Profª Márcia Machado.
SITUAÇÃO SOCIOECONÔMICA
O estudo revela também uma intrínseca relação entre a prevalência de transtornos mentais comuns e as condições socioeconômicas das mulheres entrevistadas. As regionais com os piores indicadores de desenvolvimento humano, explicam as pesquisadoras, tendem a apresentar consequências ainda mais dramáticas em relação à saúde mental das gestantes.
Fatores como ser mais jovem, ser mãe solo e morar em lares com quatro ou mais pessoas geram maior prevalência de TMC, em virtude de maior insegurança quanto à garantia do sustento da família. As mulheres grávidas sem parceiro apresentaram um risco 37% maior de transtornos mentais que aquelas com parceiro.
O estudo mostra, por exemplo, que mulheres com 12 anos ou menos de educação formal registraram riscos de TMC 18% superiores àquelas que possuíam ensino superior. Já mulheres que trabalham fora de casa apontaram uma prevalência de transtornos 18% inferior àquelas que não trabalham.
A Profª Márcia Machado adianta que está desenvolvendo nova pesquisa com a mesma equipe do estudo recém-publicado com mães que tiveram filhos em julho e agosto de 2020, e os dados coletados já apontam que a renda da mulher diminuiu e que aproximadamente 80% da renda familiar foi afetada. “Mesmo sabendo que existe legislação que protege a mulher grávida para o trabalho, ainda há muita informalidade, e as primeiras a ser demitidas são essas mulheres que vivem no sistema de emprego informal, comprometendo a qualidade de vida delas, dos filhos e filhas e de toda a família”, analisa Machado.
PRÉ-NATAL
A realização de acompanhamento pré-natal se mostrou fator preponderante para a saúde mental das gestantes durante a pandemia. Aquelas que não tiveram acesso a esse tipo de consulta médica assinalaram uma prevalência de TMC 84% superior àquelas que tiveram. Os riscos desses transtornos também são ampliados entre as mulheres que interromperam o pré-natal.
“Verificamos, nesse estudo que estamos desenvolvendo em Fortaleza, que 37% das mulheres deixaram de ir à unidade de saúde por receio de contágio por covid-19. A falta de acesso universal à tecnologia de informática para todas fez com que aquelas com piores condições de acesso ficassem ainda mais isoladas e sem o suporte das equipes de saúde e proteção social. Por outro lado, poucas estratégias de comunicação em massa foram adotadas em âmbito nacional e isso, com certeza, gerou muito mais expectativas de medo nessas mulheres diante de um vírus desconhecido”, observa a Profª Márcia Castro.
SOLUÇÕES
As pesquisadoras afirmam que o sistema de saúde sozinho não é capaz de reduzir esses impactos negativos em todas as famílias. Ele deve vir acompanhado de programas de ação social que contribuam para minimizar a pobreza extrema.
“Trabalhar as questões de segurança alimentar; incentivar o aleitamento materno, partos mais humanizados, acesso aos serviços de saúde; investir na educação, em programas de ação social deve ser foco prioritário dos governos, sob risco de termos uma piora nos indicadores de vida da população. Avançamos muito nos últimos 30 anos no Ceará, mas a gestão pública deve colocar uma lupa em diversos setores, para não voltarmos a regredir naquilo que foi conquistado nessas últimas décadas”, argumenta a Profª Márcia Machado.
Também assinam o artigo publicado os pesquisadores Hermano Alexandre Lima Rocha (UFC/Harvard), Edgar Gomes Marques Sampaio (UFC), Francisco Ariclene Oliveira (UFC), Jordan Prazeres Freitas da Silva (UFC), Camila Machado de Aquino (UFC), Liduina de Albuquerque Rocha de Sousa (UFC), Francisco Herlânio Costa Carvalho (UFC), Elisa Rachel Pisani Altafim (Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal) e Luciano Lima Correia (UFC).
Fonte: Profª Márcia Machado, da Faculdade de Medicina da UFC – e-mail: marciamachado@ufc.br