A separação e o estudo dos constituintes do líquido da casca da castanha-de-caju (LCC) representam uma verdadeira inovação tecnológica. É nesse ponto que reside a relevância da pesquisa desenvolvida no Laboratório de Produtos e Tecnologia em Processos (LPT), vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Química da Universidade Federal do Ceará.
O Prof. Claudenilson Clemente, um dos integrantes do LPT, dedicou-se basicamente a simular na bancada de laboratório aquilo que ocorre na natureza. Durante o mestrado e o doutorado, utilizou o cardanol, constituinte do LCC, como molécula-base para a síntese de porfirinas, macromoléculas presentes na natureza que, de forma geral, garantem a existência da vida na terra.
É o caso da clorofila, responsável por converter a energia solar, o dióxido de carbono ( CO2) e a água em carboidratos e oxigênio no processo de fotossíntese; da hemoglobina, que realiza o transporte do oxigênio no sangue; e do citocromo c, pequena proteína componente da hemoglobina associada à membrana interna da mitocôndria (estrutura responsável pela respiração celular), essencial na cadeia transportadora de elétrons. Esses sistemas podem sofrer uma série de transformações químicas cujas peculiaridades estão em suas propriedades exclusivas, possuindo, assim, variadas aplicações.
“Pensando nisso, nós utilizamos o cardanol, constituinte majoritário do LCC, na síntese dessas porfirinas. Conseguido isso, partimos para uma série de experimentos, principalmente visando imitar a natureza. Fizemos todo o estudo fotofísico delas (no qual investigamos a interação da luz com a matéria) e, a partir daí, conseguimos ter essa caracterização e dizer o potencial de aplicação como fotocatalisador”, explica Clemente.
A Profª Selma Elaine Mazzetto, coordenadora do laboratório, destaca que geralmente os grupos de pesquisa que trabalham com porfirina compram essas macromoléculas e fazem a modificação. No caso do LPT, o leque de aplicações se abre, já que o próprio laboratório sintetiza suas porfirinas, barateando assim o desenvolvimento do produto a ser pesquisado. “Conseguimos, digamos, 100 miligramas de porfirina por um vigésimo do preço pelo qual é vendida. Mas isso envolveu grandes esforços durante um longo período”, ressalta.
As porfirinas são utilizadas no laboratório em catálise, que é a transformação da matéria usando a menor quantidade de energia possível, com o objetivo de acelerar processos (no caso, a oxidação). Essas porfirinas dão origem a novas moléculas com grande potencial de transformações futuras. Durante o desenvolvimento de sua tese, Claudenilson Clemente aplicou-as na criação de um sensor eletroquímico.
“Utilizamos uma célula eletroquímica, modificamos a superfície de um eletrodo, com o objetivo de aumentar a sensibilidade para detectar a menor quantidade possível de um fármaco na água dos nossos sistemas de abastecimento”, detalha. O trabalho foi o primeiro passo na criação de um método de purificação com grande relevância, porque medicamentos não são fáceis de ser detectados devido às quantidades irrisórias excretadas pelo corpo humano.
TECNOLOGIA E SAÚDE
Outra aplicação das porfirinas está sendo testada nos chamados dispositivos OLED (diodo emissor de luz orgânico), tecnologia limpa já encontrada no mercado nas telas de smartphones dobráveis. Eles começam a substituir os atuais LED, os quais, apesar de serem mais vantajosos na economia energética em relação às lâmpadas incandescentes, são desfavoráveis por apresentar custo elevado. O cardanol é um forte candidato a ser usado, pois é bastante flexível, já que contém longas cadeias de átomos de carbono em sua estrutura.
Quem leva à frente o trabalho é a doutoranda Nayane Amorim, que até o fim do ano deve defender tese. Ela conta com a parceria do Prof. Marco Cremona, da PUC do Rio de Janeiro, um dos pioneiros do OLED no Brasil, com quem desenvolveu todo o aparato para a construção do dispositivo. Nayane afirma que, no caso das TVs de LED, por exemplo, o cristal líquido é iluminado por uma fonte, enquanto no OLED não há a necessidade dessa fonte de energia, porque é a própria molécula que vai emitir luz. “É possível fazer telas bem mais finas, porque não há esse jogo de iluminação”, explica.
No caso da porfirina sintetizada no LPT, ela tem uma emissão de luz na região do vermelho, integrando o menor ponto que forma uma imagem digital, o chamado pixel, na cor vermelha da tela. A ideia agora é aprimorar o dispositivo para a comercialização, com o intuito de aumentar a durabilidade do aparelho, que, por conter uma molécula orgânica, tem vida útil reduzida. Outra melhoria a ser desenvolvida é variar o espectro de cor no dispositivo, ampliando sua eficiência e agregando valor ao produto. Em abril, a doutoranda e mais nove pesquisadores, incluindo a Profª Selma Mazzetto e o Prof. Claudenilson Clemente, publicaram um artigo na revista Materials sobre essa porfirina.
Na área de saúde, o doutorando Thayllan Teixeira está desenvolvendo um novo tratamento para a leishmaniose, doença tropical negligenciada, de acordo com a classificação da Organização Mundial da Saúde (OMS), que afeta principalmente os mais pobres. “O Nordeste é líder em número de casos de calazar, a forma mais letal. E o Ceará possui o maior número de óbitos na região. Os casos continuam crescendo, podendo chegar a um estágio endêmico aqui”, explica. Um dos desafios do tratamento, hoje, segundo Thayllan, é o aumento da resistência do parasita causador da enfermidade, o protozoário Leishmania.
Transmitida pela picada indolor de um inseto (o flebotomíneo), a leishmaniose não tem cura, mas pode ser tratada em suas manifestações. O mosquito é menor que o da dengue, sendo difícil de ser visto e ouvido, e atua principalmente no amanhecer e no anoitecer. O ser humano está se tornando o principal hospedeiro por conta do processo de urbanização.
De acordo com o químico, outra preocupação é a coinfecção com o HIV, pois o vírus bloqueia o principal receptor do corpo capaz de combater a leishmaniose. Além disso, os medicamentos usados no tratamento da aids interagem com os da leishmaniose, reduzindo sua eficácia. E, mais uma vez, o cenário brasileiro é alarmante: o País é responsável por 93% dos casos de coinfecção com o HIV na América.
O líquido da casca da castanha-de-caju, já conhecido por sua atividade antibacteriana, antifúngica e ainda moluscicida (combate lesmas e caracóis), passou a ser testado no caso da leishmaniose. O trabalho é realizado em colaboração com a Profª Jânia Teixeira, no Departamento de Patologia e Medicina Legal da UFC, onde o doutorando utiliza as culturas de Leishmania infantum, que causa a forma visceral da doença, com inchaço na barriga (aumento do baço e do fígado), e de Leishmania braziliensis, responsável pela forma cutânea, com o aparecimento de feridas no corpo.
No momento, Teixeira está realizando os testes com a forma flagelada do protozoário que vive dentro do mosquito, a promastigota, e também com a forma interna, no corpo humano. “Ele é um protozoário tão inteligente que modula a nossa resposta imunológica. Ele vive dentro de nossas células de defesa, os macrófagos”, explica.
Os resultados da utilização do LCC no combate aos protozoários são promissores. “Comparado com o que se tem na literatura, estamos conseguindo matar os protozoários em baixas concentrações do LCC e, nessas concentrações, não está ocorrendo a morte da célula humana, o que é bom, ou seja, o ataque é somente ao protozoário e não ao ser humano”, comemora.
Outra contribuição do Laboratório de Produtos e Tecnologia em Processos é no combate à dengue. A doutoranda Mayara Oliveira, atenta ao potencial larvicida do LCC, estuda uma maneira de encapsular seus compostos com o objetivo de conseguir uma liberação mais lenta do pesticida. Além de melhorar o manuseio, a ideia é matar a larva num tempo mais prolongado para entender de que forma a substância atua em sua estrutura. “Utilizo como encapsulante a pectina cítrica, um carboidrato derivado da casca da laranja, que também é resíduo. Os resultados são positivos, realmente eles estão matando a larva”, explica.
A doutoranda está estudando a associação de um larvicida muito utilizado hoje, o pyriproxyfen, ao cardol e ao cardanol. Esse desdobramento da pesquisa é realizado no Núcleo de Controle de Vetores (NUVET) da Secretaria da Saúde do Ceará. Com a Fiocruz, no Rio de Janeiro, em colaboração com a Profª Jacenir Reis, Mayara vem realizando o estudo histológico, através da microscopia eletrônica de varredura (MEV) e da microscopia eletrônica de transmissão (MET), para avaliar, mais detalhadamente, as modificações que o larvicida causa nas estruturas externa e interna da larva.
Agora em agosto, a doutoranda publicou artigo sobre a atividade larvicida de derivados do cardol no Journal of the Brazilian Chemical Society, acompanhada de mais sete pesquisadores, entre eles Thayllan Teixeira, Nayane Amorim e os professores Diego Lomonaco e Selma Mazzetto, integrantes do LPT.
SAIBA MAIS
O cajueiro (Anacardium occidentale) é uma árvore nativa do Brasil, e um forte indício sobre sua origem é a ilustração feita pelo monge naturalista francês André Thevet (1502-1590) em seu livro Singularidades da França Antártica (Les singularitez de la France Antartique), de 1557, escrito após sua passagem pela costa do Nordeste e Norte do Brasil.
O pedúnculo do caju, com o qual se faz bebidas, como a cajuína, doces e até carne, é um pseudofruto, enquanto o verdadeiro fruto é a castanha-de-caju. O líquido encontrado em seu interior é escuro, corrosivo e inflamável, conhecido como LCC, matéria-prima básica para a fabricação de vernizes, tintas, plásticos, lubrificantes e inseticidas. Na parte mais interna da castanha, está localizada a amêndoa, constituída de dois cotilédones carnosos e oleosos, que compõem a parte comestível do fruto.
Fontes: Selma Elaine Mazzetto, coordenadora do Laboratório de Produtos e Tecnologia em Processos (LPT) do Programa de Pós-Graduação em Química da UFC – e-mail: selma@ufc.br; Diego Lomonaco, professor do Departamento de Química Orgânica e Inorgânica e integrante do LPT – e-mail: lomonaco@ufc.br