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Amizade em manuscritos: estudo analisa dedicatórias de livros entre Rachel de Queiroz e Manuel Bandeira

Os textos, redigidos entre as décadas de 1940 e 1960, traçam um panorama das relações pessoais e profissionais de dois dos maiores nomes do modernismo literário no Brasil

Movimento artístico e cultural que teve início com a Semana de Arte Moderna de 1922, o Modernismo promoveu uma transformação nas artes do País ao valorizar a experimentação estética, a identidade brasileira e o regionalismo. Como expoentes dessa vertente estão vários nomes do panteão da literatura nacional, como Mário de Andrade, Graciliano Ramos, Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles.

Os escritores Manuel Bandeira e Rachel de Queiroz figuram entre os notáveis da primeira e segunda fases do Modernismo no Brasil, respectivamente. Além de vivenciarem o fervor das inovações na cultura e na sociedade brasileira naquele período, os literatos compartilharam uma relação de estima e amizade que foi eternizada em uma coleção de manuscritos datados entre as décadas de 1940 e 1960. 

Os pequenos textos em formato de dedicatória de livros foram objeto de pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade Federal do Ceará, que traçou um verdadeiro retrato dos afetos entre os artistas e o contexto social e artístico da época em que viveram. De autoria da bibliotecária Ana Wanessa Bastos, o estudo teve duração de dois anos e focou no material das coleções Rachel de Queiroz, disponível na Biblioteca Central da Universidade de Fortaleza (Unifor); e Manuel Bandeira, que integra o catálogo da Academia Brasileira de Letras (ABL). 

AFETOS E MEMÓRIAS

A amostra da pesquisa contou com 23 manuscritos encontrados em exemplares de livros dedicados entre Rachel de Queiroz e Manuel Bandeira. Como critério de seleção, a pesquisadora levou em consideração obras de autoria, traduzidas ou organizadas pelos escritores e que faziam parte dos acervos particulares de cada um. Um dos enfoques foi investigar a relação interpessoal e profissional entre esses escritores, com o intuito de constatar padrões, temas e mensagens presentes nas dedicatórias. “O relacionamento entre Rachel de Queiroz e Manuel Bandeira pode ser definido como literário-afetivo, sustentado nas dimensões afetiva, poética e política”, comenta a pesquisadora. 

Nos 21 exemplares de livros de Manuel Bandeira dedicados a Rachel de Queiroz, pode-se ver textos mais ligeiros, como a escrita no livro Alumbramento: “A Rachel e Oyama, com meu abraço de Natal, Manuel. Dez 1960”; como também no Guia de Ouro Preto: “A Rachel & Oyama, boas festas! Manuel. Dez. 1963”.

Já em outros títulos, o escritor elabora mensagens mais sofisticadas, como em Antologia Poética, de 1962, no  qual se dedica a escrever um poema à escritora e seu segundo marido, o médico goiano Oyama de Macedo: “A Rachel & Oyama, Oyama ama. Quem ama Oyama? Ama Rachel. Quem ama a Oyama? Ora, Rachel! E quem mais ama Rachel e Oyama? Ah, é Manuel! Manuel Bandeira 1962”. O vínculo de amizade com o casal também é evidenciado no exemplar de Mafuá do Malungo: “A Sra. Rachel de Queiroz, querida de todos nós. Adorável e adorada e à sua metade Oyama. Quem os conhece e os não ama? Manuel Bandeira, que os ama, dedica esta malungada. Rio, 16.4.1955”. 

Em outra ocasião, no livro Poemas Traduzidos, Bandeira alude a um dos seus mais célebres poemas. “À grande e querida Rachel, com a homenagem do rei da Pasárgada, a vastidão intraduzível de Manuel. Rio, 27 de abril 1945”. No livro A versificação em Língua Portuguesa, entregue a Rachel em 1960, Manuel Bandeira finaliza a dedicatória com um desenho da bandeira nacional, substituindo os dizeres “Ordem e Progresso” pelo seu primeiro nome. De acordo com o estudo, Bandeira havia se inspirado em seus amigos, a escritora Cecília Meireles e o antropólogo Gilberto Freyre, que tinham por hábito substituir o sobrenome do poeta pelo desenho do pavilhão brasileiro. 

Dedicador mais assíduo de Rachel de Queiroz, Bandeira, enfatiza o estudo, tinha a prática de ofertar as primeiras edições de seus livros a amigos próximos. Segundo a pesquisa, os livros dedicados à escritora cearense coincidem com a data de publicação das obras – quatro exemplares são da década de 1940, nove da década de 1950, e oito da década de 1960. “Sendo as décadas de 50 e 60 as de maior período de publicação do poeta, e supostamente do aprofundamento do laço afetivo entre os escritores, o que é corroborado pelas adjetivações que constam nas dedicatórias de Manuel a Rachel”, afirma Ana Wanessa Bastos. 

Eleito como melhor trabalho do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Informação, o estudo de Ana Wanessa Bastos apresenta ainda o contexto no qual se desenvolveu o Modernismo brasileiro (Foto: Viktor Braga / UFC Informa)

Uma quantidade mais tímida de dedicatórias de Rachel de Queiroz a Manuel Bandeira foi localizada na pesquisa: apenas dois textos, dos anos de 1953 e de 1960. O primeiro, presente no livro Lampião: drama em cinco quadros, no qual escreveu Rachel: “Manuel, leia com jeito, fazendo força pra gostar, senão eu fico desolada”. Rachel, Rio Agosto 53″. Sete anos depois, a escritora assinou a dedicatória de Quatro romances: O Quinze, João Miguel, Caminho das Pedras, e As Três Marias com o pequeno texto: “Ao Manuel, louvador para sempre louvável, com ternura e humildade. Rachel 24-11-60″.   

Para a compreensão do conteúdo das dedicatórias, a pesquisadora fez uma categorização com base nos sentidos semântico e afetivo das palavras redigidas, culminando em um padrão de escrita de cada autor. “As dedicatórias manuscritas de Manuel Bandeira para Rachel de Queiroz se caracterizam pela estrutura breve e direta, e por terem uma linguagem simples porém profunda, evidenciando o entrelaçamento das dimensões afetiva e poética. Da mesma forma, as dedicatórias de Rachel para Bandeira possuem estrutura curta e direta, sendo caracterizadas por padrões que expressam o coloquialismo, a simplicidade e o regionalismo, característicos da escrita racheliana”, avalia.

Eleito como melhor trabalho do PPGCI em 2024, o estudo foi orientado pelo professor Jefferson Veras, que aponta o diferencial da pesquisa em focar nas marcas de proveniência – elementos visuais ou textuais como anotações, carimbos, assinaturas e dedicatórias – desses livros presenteados. Para o docente, a sociabilidade entre os escritores destacada no estudo se vincula ao alicerçamento do Modernismo literário no Brasil. 

“Essas redes de sociabilidade foram, de certa forma, fundamentais para a consolidação do movimento. Rachel de Queiroz e Manuel Bandeira pertenciam a gerações diferentes do Modernismo, mas compartilhavam uma sintonia estética e artístico-literária. As dedicatórias analisadas mostram como essa sintonia refletia admiração e afeto. Além disso, o estudo ajuda a perceber a Rachel de Queiroz como uma figura integrada às redes modernistas do eixo Rio-São Paulo, com relações próximas a outros escritores influentes, como, por exemplo, Mário de Andrade. Ao revelarem palavras como ‘querido’ ou ‘velho amigo’, as dedicatórias evidenciam a existência de laços de amizade e carinho entre os intelectuais”, ilustra Jefferson Veras.

ASPECTOS SOCIAIS

A investigação acerca das dedicatórias não apenas traz à tona detalhes da amizade entre dois grandes escritores, mas também provê informações acerca do cenário social no qual o modernismo brasileiro se desenvolveu. “As dedicatórias analisadas abrangem o período histórico e cultural marcado pela valorização da identidade nacional e pela modernização do país. Reporta-se a uma época de efervescência, com a atuação de artistas de destaque, como é o caso dos modernistas”, declara Ana Wanessa Bastos. 

Durante a busca geral do acervo de Rachel de Queiroz, Ana Wanessa identificou, ao todo, 950 dedicatórias de livros, redigidas por diversos autores. Os temas presentes abrangem desde arte e literatura a história e política, revelando valores e simbologias vinculadas aos seus tempos e a seus redatores. Outro destaque é que a maior parte desses manuscritos datam da década de 1980, após a entrada de Rachel de Queiroz na Academia Brasileira de Letras (ABL), em 1977; a primeira mulher a integrar o grupo de imortais da ABL.

“Rachel de Queiroz tinha uma rede de sociabilidade onde notabilizavam-se os mais díspares campos de atuação profissional, a exemplo do jornalismo, das letras, das artes, do direito, da diplomacia, das forças militares, da medicina, da política e da teologia. Avalio que sua posição de centralidade nessa rede heterogênea e influente pode evidenciar a forma como cultura, política e sociedade se entrecruzavam no Brasil no decorrer do século XX, mais precisamente nas décadas de 1930 a 1980, marcadas por profundas transformações”, enfatiza a pesquisadora. 

Observa ainda o professor Jefferson Veras que as marcas de proveniência presentes nos livros dedicados entres os escritores compõem um relevante acervo da memória nacional. “A pesquisa da Wanessa ressalta a importância de se analisar os acervos pessoais como espaços de memória dotados de diversas possibilidades de ressignificação no presente, que contêm não apenas livros, mas testemunhos de histórias de vida e trajetórias que nos ajudam a compreender melhor a cultura e a sociedade de determinada época”, conclui. 

A íntegra do estudo pode ser acessada no Repositório da UFC.

Fonte: Ana Wanessa Bastos, mestre em Ciências da Informação pela UFC – e-mail: barrosoanawanessa@gmail.com

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Cristiane Pimentel 3 de dezembro de 2025

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