O comprometimento da mucosa do esôfago é mais uma das possíveis sequelas do coronavírus, o que favorece o desenvolvimento de azia e refluxo ácido. A conclusão é de um estudo realizado por pesquisadores da Universidade Federal do Ceará (UFC), que identificou o aumento de sintomas esofágicos após a alta hospitalar de pacientes internados em razão da covid-19 durante o primeiro ano da pandemia, em 2020.
O resultado da pesquisa, fruto das atividades de doutorado de Dayllanna Feitosa no Programa de Pós-Graduação em Ciências Médicas (PPGCM), foi publicado, em maio deste ano, em artigo na revista Digestive Diseases and Sciences (Springer Nature). “O trabalho traz contribuições relevantes sobre mecanismos fisiopatológicos dos sintomas esofágicos persistentes em pacientes pós-covid e indica que o vírus SARS-CoV-2 pode afetar não apenas o sistema respiratório, mas também o trato gastrointestinal”, diz.
Coordenados pelos professores Miguel Ângelo Souza, Marcellus Ponte e Armênio Santos, os pesquisadores acompanharam 55 pacientes internados devido à covid-19 no Hospital Universitário Walter Cantídio (HUWC), em Fortaleza, em 2020. No acompanhamento pós-covid, realizado entre 3 e 6 meses após a alta, houve um aumento significativo de manifestações gastroesofágicas: a azia foi mencionada por 9% dos pacientes durante a hospitalização e subiu para 32,7% após a recuperação da covid, enquanto o refluxo passou de 10,9% para 30,9%.

A azia é percebida como uma sensação desagradável de ardência ou queimação no peito. Já o refluxo ácido é o retorno de pequenas quantidades de ácido ou fluxo de líquido azedo ou amargo até a garganta. Ambos estão relacionados ao esôfago, órgão que conecta a garganta ao estômago, transferindo os alimentos. Uma válvula muscular, chamada de esfíncter esofágico inferior, tem a função de impedir que o conteúdo do estômago, que é ácido, volte para o esôfago. Quando ela falha, ocorre o refluxo gástrico, que pode ter ou não a azia como sintoma.
Para a pesquisa, os pacientes foram avaliados, tanto durante a internação quanto 3 a 6 meses após a alta hospitalar, por meio de questionários validados para sintomas de refluxo gastrointestinal e gastroesofágico. Foram respondidas, entre outras, questões específicas sobre azia e refluxo ácido. A gravidade dos sintomas foi pontuada em uma escala de 1 a 7, e aqueles que relataram desconforto com pontuação igual ou maior a 4 (moderado a grave) foram considerados sintomáticos.
Seis meses após a alta, 25 dos 55 pacientes pós-covid e 8 pessoas do grupo de controle (sem a doença nem sintomas gastrointestinais) foram submetidos à endoscopia digestiva. Cada indivíduo teve amostras de sua mucosa esofágica coletadas para avaliação da integridade da barreira celular. As biópsias dos pacientes pós-covid revelaram aumento expressivo da citocina inflamatória IL-8 e da proteína Claudina-2, quando comparados ao grupo de controle, em meio ácido.
A citocina IL-8 é considerada um fator-chave no desenvolvimento da doença do refluxo gastroesofágico. Já as claudinas são identificadas como reguladoras da integridade das junções entre as células que revestem o esôfago e impedem a passagem de substâncias entre elas, protegendo o tecido esofágico de ácidos, enzimas digestivas e outros elementos irritantes.
RESPOSTA INFLAMATÓRIA E LESÕES
Esse fenômeno está associado ao aumento da permeabilidade do esôfago ao pH ácido, indicando comprometimento do epitélio esofágico (camada de células que reveste o interior do órgão e funciona como barreira física e imunológica). Como consequência, há uma resposta inflamatória exacerbada e alterações que podem explicar a persistência dos sintomas gastroesofágicos. Tanto a inflamação quanto as lesões na mucosa permaneceriam após a recuperação da covid-19.
O professor Miguel Ângelo Souza, do Departamento de Medicina Clínica e do Núcleo de Biomedicina (Nubimed) da UFC explica que “quando se perde a integralidade da mucosa, o indivíduo está mais sujeito a doenças, e o esôfago é mais vulnerável a refluxo”. Souza é também e chefe da unidade de Endoscopia do HUWC e integrante da equipe de pesquisadores que investigou o aumento de sintomas esofágicos em pacientes pós-covid.
A descoberta foi apresentada por ele também no Digestive Disease Week, congresso internacional de gastroenterologia, que aconteceu, no início do mês de maio, em San Diego, Califórnia, nos Estados Unidos. O pesquisador chama atenção para a necessidade de aprofundar os conhecimentos sobre as sequelas da covid-19: “A parte digestiva não é tão bem discutida quanto deveria, e os efeitos ainda são pouco conhecidos em uma possível covid longa”.

COVID LONGA
A condição pós-covid, comumente conhecida como covid longa, afeta um ou mais sistemas do corpo a médio e longo prazo. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), estima-se que 6 de cada 100 pessoas que contraíram o vírus SARS-CoV-2 convivam, após a fase aguda da doença, com sintomas ou sequelas duradouras, que tanto podem ser a continuidade do que já foi sentido durante a infecção como sinais novos, não experienciados antes.
Embora os mecanismos da covid longa ainda estejam sendo investigados, a explicação mais aceita por estudiosos é de que a condição resulte de uma resposta inflamatória sistêmica mediada por proteínas inflamatórias chamadas citocinas e hipóxia tecidual, situação em que as células dos tecidos do corpo não conseguem obter oxigênio suficiente para funcionar adequadamente.
TRATAMENTO PARA AZIA E REFLUXO GÁSTRICO
Tanto a azia quanto o refluxo gástrico podem ser controlados, de acordo com a gravidade dos sintomas, com uso de medicamentos para a redução da acidez estomacal e mudanças de hábitos relacionados à alimentação, atividades físicas e controle de peso. Em casos graves ou quando a medicação não se mostra eficaz, a cirurgia antirrefluxo pode ser indicada.
Se não tratado, o refluxo gástrico pode ocasionar úlceras, levando a uma esofagite de refluxo. Processos inflamatórios de repetição têm potencial de estreitar a passagem do alimento através do esôfago (condição conhecida como estenose). Uma complicação tardia pode ser a substituição do revestimento normal do esôfago por um semelhante ao do intestino, situação chamada de “Esôfago de Barrett”.
INVESTIGAÇÃO EM OUTRAS MUCOSAS
Os resultados da pesquisa servem de alerta para possíveis efeitos da covid-19 e outras viroses no sistema gastrointestinal. “Será que outros epitélios também foram atingidos?”, questiona o professor Miguel Ângelo. Ele lembra que, apesar de o intestino delgado ser bastante resiliente, manifestações gastrointestinais, como diarreia, foram apresentadas por pacientes de covid-19. O vírus já foi detectado no esôfago, estômago, duodeno e reto.
Os pesquisadores da UFC ressaltam a importância do monitoramento contínuo e do desenvolvimento de estratégias terapêuticas para mitigar os efeitos gastroesofágicos em pacientes em recuperação da covid-19.
Fonte: Prof. Miguel Ângelo Nobre Souza, do Departamento de Medicina Clínica e do Núcleo de Biomedicina da UFC, chefe da unidade de Endoscopia do HUWC – e-mail: mans@ufc.br
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