Encontrar lixo durante uma caminhada à beira-mar em praias brasileiras não é raro. Entretanto, um banhista mais curioso pode ser surpreendido ao constatar uma tampa de refrigerante Festa ou água mineral Swissta, produtos não comercializados no País. Uma análise feita por cientistas da Universidade Federal do Ceará (UFC) em resíduos plásticos encalhados na costa cearense em 2022 constatou que mais de 78% dos itens tinham origem no continente africano, trazidos por correntes transcontinentais.
Com o intuito de monitorar e analisar a poluição plástica no litoral, a equipe de pesquisadores da UFC realizou coletas de itens encalhados na Praia do Futuro, em Fortaleza; no Porto das Dunas, em Aquiraz; e em Jericoacoara, em Jijoca, escolhidas em razão de seus diferentes níveis de influência das ações humanas. Foram recolhidos manualmente 1.062 itens plásticos, somando 9,7 quilos de resíduos, em novembro de 2022. A investigação foi feita por pesquisadores do Instituto de Ciências do Mar (LABOMAR) e teve seus resultados publicados no periódico internacional Science of the Total Environment.
Já era sabido que habitats costeiros acabam como sumidouros para uma parcela significativa dos plásticos flutuantes do oceano, além daqueles de fontes terrestres. No entanto, durante a inspeção inicial, chamou a atenção a presença de itens distintos dos comumente encalhados nas praias brasileiras, bem como a fixação neles de organismos comuns em águas oceânicas. Essas características levaram os pesquisadores a considerarem a hipótese de que resíduos plásticos de outros países podiam ter chegado à costa nordeste do Brasil por meio de correntes oceânicas.
Entre o material reunido havia predominância de tampas de garrafas, com 79,8% do total, seguidas por embalagens de cosméticos e potes de alimento, que somavam 16%. Dados anteriores, porém, apontam que são outros os itens que costumam ser encontrados nas praias brasileiras, em particular na costa cearense: canudos, garrafas PET, embalagens de alimentos, isopores e equipamentos de pesca descartados. Com essas informações, a equipe optou por uma metodologia que articula uma auditoria de marca com simulações de deriva utilizando-se de um software de modelagem de trajetória e destino.
A auditoria de marca foi aplicada com a finalidade de identificar as marcas, as empresas-mãe e a origem potencial dos resíduos plásticos. O resultado confirmou que 78,5% do material recolhido era oriundo de países da África, 15,7% do Brasil e 5,8% de outras nações. Simulações de deriva reforçaram a hipótese dos pesquisadores da UFC, ao indicar o rio Congo, no continente africano, como principal fonte desses resíduos. Não é possível determinar se o descarte impróprio foi realizado pelas indústrias ou pelos consumidores.
Na auditoria, foram identificadas 31 marcas de sete países africanos, das quais mais de 90% tinham origem na República Democrática do Congo. No total, 15 marcas pertenciam à indústria de bebidas, enquanto outras 15 eram fabricantes de produtos de beleza. Três marcas respondem por quase 58% de todo o plástico, sendo 37% dos refrigerantes Festa, 14% dos sucos Zest e 7,4% da água Swissta. Nenhum desses produtos é vendido no Brasil e não há em seus sites ou redes sociais informações de como importá-los.
Festa, que também produz bebidas energéticas, e Swissta fazem parte da mesma empresa-mãe, a Swissta RDC S.A.R.L, que responde por 44,1% dos resíduos. Amigo Foods, produtora do suco Zest, concorre para 15,4% dos itens coletados. Em seguida, aparece a Angel Cosmetics, que possui cerca de 40 produtos para pele e cabelos, com 6,2% dos resíduos.
De todos os itens africanos, 70,4% foram classificados como moderadamente degradados, enquanto 18,2% tiveram um baixo nível de degradação. Esses níveis de degradação permitiram a identificação mais confiável de marcas, logotipos e textos durante a auditoria de marca. Plásticos altamente degradados, correspondentes a outros 11,4% dos itens, foram mantidos em laboratório, pois não havia como serem considerados na auditoria.
O levantamento analisou ainda a pigmentação dos detritos plásticos, característica que afeta diretamente sua detectabilidade como presa por animais marinhos. Quatro cores foram as mais comuns: branco (33,3%), azul (28,1%), verde (18,4%) e vermelho (9,4%). Menos de 5% tinham outras cores. A literatura aponta que itens flutuantes de cores mais escuras têm maior probabilidade de serem ingeridos por animais aquáticos, como tartarugas e peixes, enquanto os de cores mais claras tendem a ser mais selecionados por animais que são ativos acima da linha d’água, como aves marinhas.
CONSEQUÊNCIAS
Os resíduos plásticos nos oceanos causam impactos devastadores na fauna marinha. Segundo Tommaso Giarrizzo, professor da UFC e pesquisador do LABOMAR responsável pelo projeto, “tartarugas, peixes e aves frequentemente confundem plásticos com alimento, resultando em morte por ingestão ou sufocamento”. Entre embalagens e potes plásticos coletados para a pesquisa, vários apresentavam pedaços arrancados ou marcados por mordidas de animais. Além disso, o plástico pode liberar substâncias tóxicas no ambiente à medida que se degrada, afetando a qualidade da água e dos ecossistemas costeiros. Praias poluídas também são propensas à proliferação de doenças e pragas.
Embora não haja diferenças significativas entre os plásticos produzidos na África e no Brasil – as tampas recolhidas, por exemplo, são muito semelhantes às nossas –, a entrada desse material estrangeiro pelo mar representa riscos extras: “No ambiente, o plástico torna-se um substrato que pode ser colonizado por organismos como algas e cracas, além de servir de veículo para patógenos exóticos que não existem em nosso país. Após atingir nossas praias, esses plásticos podem facilmente entrar em contato com as mãos ou bocas de crianças, representando um risco significativo para a saúde pública”, explica.
A poluição plástica causa também significativos efeitos sociais e econômicos, sobretudo em comunidades costeiras dependentes do turismo e da pesca. Giarrizzo comenta: “A limpeza das praias e dos oceanos gera altos custos para governos e organizações, bem como há perdas econômicas associadas ao declínio do turismo e da pesca. A poluição plástica também afeta diretamente a produtividade pesqueira, já que redes e outros equipamentos ficam danificados por detritos, e os peixes ingerem microplásticos, comprometendo a segurança alimentar e a saúde humana”.
A identificação das fontes de poluição plástica no litoral é fundamental para que o poder público possa desenvolver medidas de mitigação adequadas, conforme o produto, o produtor, o responsável pelo descarte e sua classe social. “Mesmo que a poluição tenha origem em outros países, há estratégias locais eficazes que podem ajudar a reduzir seus impactos”, argumenta. Para ele, além de campanhas de educação ambiental, parcerias internacionais e políticas locais de incentivo à reciclagem e redução do uso de plásticos descartáveis, seria necessário o monitoramento contínuo de plástico no ambiente marinho.
“Uma grande limitação no Brasil é a falta de um monitoramento padronizado e harmonizado para o plástico no ambiente marinho. Atualmente, monitora-se vários parâmetros ambientais, como a qualidade da água, mas ainda não existem programas de monitoramento regulares, com frequência mensal ou sazonal, voltados especificamente para o acompanhamento da poluição plástica nas praias. Isso é particularmente preocupante para estados como o Ceará, cuja economia depende fortemente do turismo nacional e internacional atraído pelas suas praias”, opina o pesquisador.
A pesquisa segue em andamento para determinar se o evento foi uma ocorrência única ou o produto de padrões sazonais de circulação oceânica. Parcerias com o envolvimento de colaboradores de outros estados da região, como Rio Grande do Norte e Maranhão, ajudarão a aprofundar as descobertas, permitindo uma análise mais abrangente da poluição plástica ao longo da costa nordestina e a proposta de um protocolo de monitoramento padronizado e comparável.
TRAJETÓRIA DO LIXO
Como o conjunto de itens plásticos recolhidos nas praias cearenses não correspondia ao usual, os pesquisadores decidiram testar a hipótese de que resíduos de outros países pudessem chegar à costa nordeste do Brasil trazidos por correntes transoceânicas. Para identificar possíveis rotas e origem do material, foi usado o software OpenDrift, que modela as trajetórias e o destino de objetos ou substâncias à deriva no oceano.
A região Nordeste está sob influência de três grandes correntes oceânicas: a Corrente Norte do Brasil, a Corrente do Brasil e a Corrente Equatorial. Sabe-se ainda que a bacia do rio Congo é uma das 14 bacias do mundo que, juntas, recebem mais de um quarto dos resíduos globais. Considerando a Praia do Futuro como destino e a hipótese do rio Congo como provável fonte, três conjuntos de simulações foram executados com partículas virtuais representando os resíduos plásticos. Cada uma dessas partículas teve sua trajetória rastreada por 365 dias. Giarrizzo relata que a abordagem permitiu a identificação das regiões de trânsito mais intenso das partículas liberadas sob as mais variadas condições oceanográficas durante o período de estudo, ou seja, o segundo semestre de 2022.
Os resultados da modelagem indicam que a maioria das partículas liberadas na foz do rio Congo teria permanecido no leste do Oceano Atlântico Sul, ao sul do Equador, abrangendo a costa leste da América do Sul e a costa oeste da África. Já certa porção teria sido transportada para o Atlântico Ocidental, em particular a plataforma continental do Brasil, sendo depois uma parte levada para o sul, ao longo da encosta da plataforma brasileira, pela Corrente do Brasil, e o restante levado para o noroeste pela Corrente do Norte do Brasil e então para o leste na retroflexão da Corrente do Norte do Brasil.
De acordo com a pesquisa, os estados do Brasil que mais recebem plásticos do Congo são os localizados entre os estados de Alagoas e Pará, o que inclui também Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, Piauí e Maranhão.
PROBLEMA GLOBAL
A maior parte do plástico flutuando no mar consiste em itens de longa duração que se originaram longe de onde são encontrados. Estima-se que aproximadamente 80% dos resíduos plásticos encontrados no ambiente marinho têm origem terrestre, e os rios desempenham um papel crucial nesse processo. Um estudo global apontou que cerca de 1.000 rios são responsáveis por quase 80% das emissões de plásticos transportados dos continentes para os oceanos. “Esses rios funcionam como grandes vias de transporte, carregando resíduos gerados em áreas urbanas e rurais para o mar”, detalha Giarrizzo.
A predominância de plásticos provenientes da África identificados nas praias de Jericoacoara, Porto das Dunas e Praia do Futuro destaca a influência das correntes transcontinentais e reforça a importância de se entender a poluição plástica como um problema global, que afeta até mesmo regiões com pouca contribuição direta de fontes terrestres, caso do Ceará.
Por ser um problema global, é importante não estigmatizar o continente africano. Em todo o mundo, aproximadamente 400 milhões de toneladas de plástico são produzidas por ano, embora a fração desse material que acaba nos oceanos do planeta permaneça incerta. Entre 2010 e 2020, enquanto 5.628 toneladas de resíduos de outros países chegaram às praias brasileiras, o Brasil foi responsável pelo despejo de 300.874 toneladas de resíduos no Oceano Atlântico. O lixo descartado aqui também é levado por correntes marítimas, geralmente em direção ao norte, e encalha em outros lugares, como países do Caribe e Estados Unidos.
O Prof. Tommaso Giarrizzo é bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). A pesquisa foi financiada pela Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP), dentro do projeto Detetives do Plástico: Abordagem Integrada para a Avaliação da Poluição por Plásticos na Costa Semiárida do Ceará.
Fonte: Tommaso Giarrizzo, professor da UFC e pesquisador do LABOMAR – E-mail: tgiarrizzo@gmail.com.
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